Opinião

Todo azul do amor

Memorar envolve-se no tempo, tempo, tempo, como caetaneado na “Oração ao tempo”. A compor destinos, o tempo parece contínuo em quase quatro décadas. Eu e Jacutinga nos encontramos em Vilhena, cidadezinha localizada na divisa Rondônia-Mato Grosso. Quase todas as casas eram de madeira, como nos filmes de faroeste. Em dias de ventania, a cidade se coloria de vermelho e podíamos ver as pinceladas do vento, a levantar a terra das ruas. Éramos muito jovens e tínhamos a certeza de que junto ao “bom selvagem”, no caminho rousseauniano, nos tornaríamos civilizados.

Na cidade, sem saber em que aldeia passaria a morar, conheci Neuzete, atendente de enfermagem, lotada na aldeia Campos Novos, Terra Indígena Nambiquara. Ela me recebeu com cumplicidade e nos tornamos próximas, a compartilhar sentimentos de estar longe de casa, dos familiares, dos signos culturais tão distantes daqueles inscritos no viver em aldeia.

A mirar-me, “como tivesse olhando o mar”, Jacutinga roubou-me da aldeia Aroeira, Terra Indígena Pirineus de Souza, onde eu morava. Ao me levar para a aldeia Sapezal, tão distante da Aroeira, os índios ficaram muito zangados com o roubo da professora. Nos rádios amadores da Funai, o facebook da época, o assunto não era outro: o roubo da professora. Por duas vezes os indígenas da aldeia Aroeira perdiam suas mulheres para o povo da aldeia Sapezal. O índio Raimundo, grande amigo de Jacutinga, havia roubado Kalu Kalapalo, e ele, a professora Anna.

O rapto de mulheres é recorrente entre o povo Nambiquara. Pode levar os grupos ao conflito, à morte. Como um autêntico Nambiquara, Jacutinga retorna à Terra Indígena Nambiquara acompanhado de uma mulher. Os indígenas comemoraram a vitória, ainda que sabedores de possíveis represálias. Anos mais tarde, quando Nilzinha, irmã de Jacutinga, chegou para ocupar o cargo de professora na aldeia Aroeira, o afrontamento se dissipou. Estabeleceu-se uma troca de mulheres, como pode ocorrer entre o povo Nambiquara.

Jacutinga, até hoje, se põe a ouvir a composição de Flávio Venturini “Todo azul do mar”.

Redação

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