Gasto cerca de duas horas para fazer uma crônica de 500 palavras. Depois deixo-a descansar um ou dois dias e volto para dar alguns retoques: releio para ver o ritmo, tiro advérbios desnecessários e elimino alguns adjetivos sem função relevante. Em seguida, verifico o tamanho dos parágrafos, frases e orações, substituindo palavras vagas por outras mais precisas. Isto leva mais algum tempo.
Lembrei-me hoje de que a Inteligência Artificial, em poucos segundos, consegue fazer este trabalho por mim. Aí disse a ela:
“Crie uma história irônica em que um famoso recrutador de funcionários para função administrativa, dizendo-se livre de preconceitos, é desmascarado por um estagiário encarregado de arquivar os currículos analisados pelo profissional. Enfatizar que ele (o recrutador), como se soube depois, era um tremendo farsante. O pior candidato, segundo seu disfarçado critério, teria o seguinte perfil: mulher, negra, maior de 50 anos, trans, ateia e comunista”.
A resposta da IA veio imediatamente:
“Eu não contrato perfis, eu contrato pessoas”, repetia em todas as entrevistas. Seus colegas, jovens consultores de RH em ascensão, balançavam a cabeça com admiração, anotando tudo em seus cadernos de couro vegano.
Mas havia um detalhe que poucos percebiam: a mesa de Alfredo. Organizada com uma obsessão quase artística, os currículos impressos dos candidatos iam sendo distribuídos em seis pilhas discretas, posicionadas em arco. Apenas ele sabia o significado da ordem. Ou achava que apenas ele sabia.
João Pedro, o estagiário encarregado de digitalizar e arquivar os documentos depois de cada rodada de entrevistas, começou a notar um padrão curioso. Como estudante de Sociologia — o que já o tornava automaticamente “comunista” aos olhos de Alfredo — João Pedro observava as pilhas com o interesse de um cientista diante de um experimento eticamente duvidoso.
Primeiro, desconfiou de coincidência. Depois, coletou evidências. Tirou fotos discretas da disposição dos currículos e cruzou os dados com as fichas dos candidatos. O padrão emergiu como uma confissão em papel timbrado.
Na pilha mais próxima do braço direito de Alfredo — a “zona ouro” — estavam sempre os mesmos perfis: homens brancos, entre 30 e 45 anos, heterossexuais assumidos, cristãos declarados e, se possível, com um perfil no LinkedIn repleto de frases do Jordan Peterson.
Na pilha final, afastada para o canto da mesa, encontravam-se os “inadmissíveis”: negras, com mais de 50 anos, algumas com nomes femininos seguidos de “(ela/dele)”, ou que assinalavam “sem religião” e “posições políticas: esquerda progressista”.
Não sei o que vocês, leitores, acharam do texto da IA. Eu não gostei. Mas sei que sou suspeito, pode ser que esteja vendo essa ferramenta como uma ameaça à minha renda e sobrevivência como cronista (rsrs). Jornais e sites podem simplesmente encomendar um texto sobre qualquer assunto para o GPT, que estaria pronto em 30 segundos.
De qualquer forma, não vou utilizar mais. Não só porque o texto é ruim, mas também por conta da economia de tempo que a IA me garantiu. Nessa altura da vida, eu preciso muito mais de ações que gastam tempo do que as que o economizam. Fazer o quê com as horas que poupei na construção do texto de hoje?
Renato de Paiva Pereira.
Foto Capa: Chat GPT