O comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, aceitou a pressão e a interferência de Jair Bolsonaro e decidiu nesta quinta-feira (3) livrar o general da ativa Eduardo Pazuello de qualquer punição por ter participado de um ato político do presidente.
Oliveira acatou o argumento de Bolsonaro, Pazuello e generais da reserva que integram o governo. Para eles, o ato político no Rio de Janeiro, no último dia 23, não teve conotação partidária.
O comandante arquivou o processo aberto para investigar transgressão disciplinar por parte do ex-ministro da Saúde.
Em nota publicada no site da Força, de forma discreta e sem alarde, o Exército afirmou que "o comandante analisou e acolheu os argumentos apresentados por escrito e sustentados oralmente pelo referido oficial-general".
"Desta forma, não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do general Pazuello. Em consequência, arquivou-se o procedimento administrativo que havia sido instaurado", diz o comunicado.
Ao arquivar o procedimento, Oliveira ignorou ter existido a transgressão número 57, prevista no regulamento disciplinar do Exército: "Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária."
O comandante ignorou ainda o propósito do regulamento previsto no próprio decreto que o instituiu: preservar a disciplina militar. Segundo o regramento, existe disciplina quando há "acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições".
A posição do comandante é contrária à defesa feita por integrantes do Alto Comando do Exército, que pediram punição, de forma célere, a Pazuello.
Os generais do Alto Comando foram ouvidos por Oliveira ao longo de todo o processo. A decisão do comandante, porém, foi pela absolvição.
Após o ato político no Rio, ocorrido em 23 de maio, o vice-presidente Antonio Hamilton Mourão declarou que uma eventual punição de Pazuello teria por objetivo "evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças Armadas".
"Assim como tem gente que é simpática ao governo, tem gente que não é", disse na ocasião.
À Folha de S.Paulo, após a decisão do comandante do Exército de livrar Pazuello de punição, Mourão afirmou que por "questão de disciplina intelectual" não irá comentar a decisão do Exército.
"Não irei comentar por uma questão de disciplina intelectual, pois como general da reserva também sou subordinado ao Comandante do Exército brasileiro", afirmou o vice-presidente pouco depois de o Exército tornar pública a decisão.
No Congresso, o ato do comandante do Exército foi considerado por parlamentares como uma mancha à imagem da instituição e também uma sinalização ruim para a sociedade.
No começo da semana, o comandante já sinalizava a colegas de farda que integram o Alto Comando que a possibilidade de não punir Pazuello estava na mesa de discussões.
Oliveira argumentou que a pressão feita pelo presidente Bolsonaro era um fator relevante e poderia ser decisiva para não punir o general da ativa.
Diante da possibilidade, concretizada nesta quinta, discutiu-se, então, uma passagem imediata de Pazuello à reserva. Este movimento, porém, dependeria do próprio general, que já havia dito a integrantes do Alto Comando que não tomaria essa iniciativa enquanto durar a CPI da Covid no Senado.
Generais do Alto Comando manifestaram o desejo de que ocorresse com Pazuello pelo menos algo semelhante ao que ocorreu com Mourão em 2017, quando ele perdeu um posto na cúpula do Exército após defender a possibilidade de intervenção militar.
Em 2015, Mourão perdeu o comando militar do Sul por criticar a presidente Dilma Rousseff. Em 2018, aliou-se a Bolsonaro e tornou-se o vice na chapa para a Presidência da República.
Pazuello não foi punido e não foi para a reserva. Pelo contrário: ganhou um cargo no Palácio do Planalto. Ele é, desde terça-feira (1º), secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos, vinculada à Presidência da República.
O ato político que gerou o processo disciplinar ocorreu no fim da manhã de domingo (23).
Pazuello subiu sorridente ao carro de som onde estava Bolsonaro. Pouco antes houve um passeio de moto com apoiadores, do Parque Olímpico ao aterro do Flamengo. O percurso teve 40 quilômetros. Ao fim, houve discurso aos apoiadores.
O "gordo", como Bolsonaro se referiu a Pazuello, retirou a máscara assim que atingiu o topo do palanque. E fez um discurso curto aos apoiadores.
"Fala, galera", introduziu o general da ativa. "Eu não ia perder esse passeio de moto de jeito nenhum. Tamo junto, hein. Tamo junto. Parabéns pra galera que está aí, prestigiando o PR [presidente]. PR é gente de bem. PR é gente de bem. Abraço, galera."
O decreto de 2002 que institui o regulamento disciplinar do Exército prevê como transgressão disciplinar a manifestação política por militar da ativa.
O Estatuto dos Militares, uma lei em vigor desde 1980, veda "quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político".
Um processo formal foi instaurado para apurar a transgressão. A punição poderia ser uma advertência, repreensão, prisão ou exclusão dos quadros.
Bolsonaro, em uma de suas lives semanais, disse que o ato com motociclistas no Rio de Janeiro não teve viés político pelo fato de ele não estar filiado a nenhuma legenda.
"É um encontro que não teve nenhum viés político, até porque eu não estou filiado a partido político nenhum ainda. Foi um movimento pela liberdade, pela democracia e apoio ao presidente", afirmou Bolsonaro.
Já integrantes do Alto Comando do Exército consideraram descabida a participação de Pazuello na manifestação política no Rio. Eles disseram, reservadamente, ver com clareza a ocorrência de transgressão disciplinar e pressionaram tanto pela punição quanto pela transferência do ex-ministro para a reserva. No fim das contas, aceitaram a decisão do comandante.
O ex-ministro da Saúde é um dos principais alvos da CPI da Covid, por ter comandado a pasta durante o agravamento da pandemia no país. Ele prestou depoimento ao colegiado, quando blindou Bolsonaro, e foi reconvocado.
Na avaliação do deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, "estão destruindo a imagem do Exército". "A cúpula do Exército demonstrou uma fragilidade grande na posição de representante do Estado brasileiro", disse.
Em uma rede social, Maia defendeu que se discuta a PEC (proposta de emenda à Constituição) da deputada Perpétua Almeida (PC do B-AC) que veda aos militares da ativa a ocupação de cargo de natureza civil na administração pública na União, estados e municípios.
O texto indica que, para exercer cargos de natureza civil, o militar com menos de dez anos de serviço deverá se afastar da atividade. Os que tiverem mais que dez anos, deverão passar para a reserva.
A deputada Perpétua afirmou que vai intensificar os esforços junto a parlamentares para conseguir apoio para a PEC.
Pesquisa Datafolha realizada em maio mostrou que a maior parte da população rejeita a nomeação de militares para cargos no governo federal. Segundo o levantamento do instituto, 54% dos entrevistados são contrários à presença dos fardados nesses postos, ante 41% que são favoráveis.
Promessa de campanha de Bolsonaro, a indicação de militares para ministérios e outros cargos de relevância atingiu na atual gestão níveis inéditos desde o fim do regime militar, em 1985.
Vice-presidente da Câmara, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) criticou o anúncio. "O Exército não decidiu arquivar a denúncia contra Pazuello. O Exército decidiu que agora militar pode participar de manifestações políticas como bem entender. Isso não será bom para uma instituição que tem o respeito do povo brasileiro", afirmou.
O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) também lamentou a decisão do Exército. "Permitir que general participe de ato político é coisa de chavista [em referência ao ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez]", disse.
"O Exército brasileiro submete-se a uma das maiores humilhações da história desta honrada instituição. O Comandante do Exército tem o dever de responder por essa omissão", acrescentou.
Kataguiri é autor de requerimentos de convocação do ministro Walter Braga Netto (Defesa) e do comandante do Exército para prestar esclarecimentos na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle sobre a participação de Pazuello nos atos ao lado de Bolsonaro.
A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) considerou grave que a "cúpula do Exército ignore seus próprios regulamentos".
"Ao decidir não punir Pazuello, abre margem para fortalecer a incidência da extrema direita dentro das Forças Armadas."
Para o deputado Ivan Valente (PSOL-SP), a decisão foi um atentado à democracia. "Está instalada a anarquia militar e poder ao guarda da esquina. Impeachment já e povo na rua contra golpistas. Vergonha srs. generais!", escreveu em uma rede social.
A transgressão disciplinar, levando em conta o que está previsto em lei e o que avaliavam integrantes do Alto Comando, teria ocorrido da seguinte forma:
– O regulamento disciplinar do Exército, instituído por decreto em 2002, se aplica a militares da ativa, da reserva e a reformados (aposentados). Um anexo lista 113 transgressões possíveis
– A transgressão de número 57 é a que mais compromete Pazuello: "Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária." Não há informação, até o momento, de que Pazuello tivesse autorização de seus superiores no Exército para a manifestação política a favor de Bolsonaro
– Outras transgressões listadas são "faltar à verdade ou omitir deliberadamente informações que possam conduzir à apuração de uma transgressão disciplinar"; "portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura"; e "frequentar lugares incompatíveis com o decoro da sociedade ou da classe"
– O comandante do Exército, a quem cabe aplicar a punição, pode cometer uma transgressão disciplinar se deixar de punir o subordinado transgressor, segundo o mesmo regulamento
– O propósito do regramento, conforme a lei, é preservar a disciplina militar. Existe disciplina quando há "acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições";
– Para julgar uma transgressão, são levados em conta aspectos como a pessoa do transgressor, a causa, a natureza dos fatos e as consequências. Se houver interesse do sossego público, legítima defesa, ignorância ou atendimento a ordem superior, a transgressão pode ser desconsiderada, o que não parece se enquadrar no caso de Pazuello
– O acusado tem direito a defesa, manifestada por escrito. O bom comportamento é um atenuante. As punições vão de advertência e repreensão a prisão e exclusão dos quadros, "a bem da disciplina"
– O caso de Pazuello pode se enquadrar ainda no Estatuto dos Militares, uma lei em vigor desde 1980. O artigo 45 diz que "são proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político"