A disputa entre Estados brasileiros pela presença de indústrias dentro de suas divisas como propulsão do desenvolvimento econômico local deu origem a emaranhados de leis, hoje visíveis no que se chama guerra fiscal. A concorrência é tão ferrenha que em alguns casos, em Mato Grosso, por exemplo, o desconto na taxação de impostos chegou a altos percentuais.
A mesma corrida, realizada por de programas de incentivo fiscal, abriu brecha para negócios fraudulentos entre governos e empresas. A CPI do Incentivo Fiscal, realizada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso, e a delação premiada do ex-governador Silval Barbosa (PMDB) são amostras de como a corrupção pode se instalar no Estado.
A quantidade de negociatas colocou o modelo sob os auspícios da corrupção, tanto que falar de incentivo fiscal pode ser vinculado quase automaticamente a meandros de crimes. Em Mato Grosso, o secretário de Empreendedorismo e Investimento, Leopoldo Rodrigues de Mendonça, diz que só o tempo e forte fiscalização do Estado poderão recuperar a credibilidade das políticas de incentivo.
“O que aconteceu no governo Silval Barbosa foi a desmoralização do incentivo fiscal, foi deturpação do incentivo fiscal, foi o uso dele de maneira errada. Fizeram negócio com incentivo. Empresas sem documento, sem processo, receberam incentivo fiscal por meio de decreto do governador”.
Leopoldo afirma que Silval Barbosa chegou a conceder 80 autorizações de incentivo fiscal em apenas um ano de mandato. Dentre elas, algumas reveladas em delação premiada à Procuradoria Geral da República (PGR) e das quais o Estado tenta recuperar os descontos ilegais.
“Ainda existem empresas que não deveriam estar recebendo incentivo. Mas um decreto do governador autoriza a concessão de incentivo para setores não cobertos pelo Prodeic (Programa de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Mato Grosso), e dentro de alguns setores algumas empresas estão sendo beneficiadas”, explica.
O secretário afirma que hoje 690 empresas têm concessão de incentivo fiscal em Mato Grosso. No fim do governo de Silval Barbosa eram 829. Essas 139 empresas, todas elas tinham o incentivo fiscal de maneira irregular. No governo de Pedro Taques, 17 empresas tiveram acesso ao benefício.
“Há casos de empresário que recebia incentivo fiscal, mas sequer tinha estabelecimento comercial, muito menos indústria para trabalhar o que eles diziam produzir. Simplesmente comprava um produto e repassava, em venda, alto nível de incentivo fiscal”.
Em depoimento à PGR, Silval Barbosa cita mais de um caso de uso de incentivo fiscal. Os casos variam de concessão a empresa de loja de imóveis, cujo dinheiro foi transferido a políticos para quitação de dívidas de campanha, até liberação do incentivo para o setor de transporte rodoviário intermunicipal a pedido de deputados. Os casos são investigados pela Polícia Federal.
No segmento de frigoríficos, a concessão irregular de incentivo contribuiu para a concentração de mercado da JBS em Mato Grosso, que num período dez anos conseguiu a detenção de 50% do mercado de abate.
Em sua delação, o empresário Wesley Batista, sócio da JBS, grupo que controla o frigorífico Friboi, afirmou que pagou propina de R$ 30 milhões ao ex-governador Silval Barbosa, para que o grupo fosse beneficiado com a redução do percentual de impostos pagos pela empresa ao governo.
“Órgãos de controle eram uma piada”
Leopoldo Rodrigues de Mendonça afirma que a falta de ação de órgãos fiscalizadores contribuiu para a aplicação de manobras via programas de incentivo fiscal.
“Os órgãos de controle, TCE (Tribunal de Contas do Estado) e Assembleia Legislativa, fingiam que fiscalizavam [os atos de concessão de incentivo], mas passava batido. Era uma piada a fiscalização”.
Ele exemplifica casos em que o governador Silval Barbosa informava a isenção de R$ 700 mil a R$ 1 milhão por ano a empresas por meio do Prodeic, no entanto, o real desconto ultrapassava o dobro desses valores.
Leopoldo Mendonça diz que os valores aparecem ainda hoje nos lançamentos de renúncia fiscal na LOA (Lei Orçamentária Anual), que para 2018 prevê desconto de R$ 3,5 bilhões – R$ 2,6 por meio da Sedec (Secretaria de Desenvolvimento Econômico), incluindo vários tipos de programas de incentivo, e R$ 1,6 bilhão apenas para empresas cadastradas no Prodeic.
“Empresas que receberam incentivo fiscal no governo do Silval ainda aparecem na LDO do próximo ano. Eles têm dez anos de incentivo concedido por meio de acordo. Em alguns casos, a Sefaz (Secretaria de Fazenda) conseguiu recuperar, em outros está tentando reaver, mas em alguns há decisões judiciais favoráveis às empresas”.
CPI identificou rombo de R$ 1,7 bilhão
A CPI dos Incentivos Fiscais, instalada na Assembleia entre 2015 e 2016, aponta em seu relatório final de atividades a sonegação de R$ 1,781 bilhão aos cofres públicos de Mato Grosso de empresas e cooperativas inscritas em programas de incentivo fiscal.
As fraudes foram identificadas em atividades entre os anos 2011 e 2014. Cerca de 160 empresas entraram na lista de suspeitas de fraudes e em todas houve confirmação de algum tipo de irregularidade. Os trabalhos da CPI foram divididos em três frentes: de incentivo fiscal, de cooperativas e regime especial, e o resultado conjunto aponta para evasão fiscal que chega a 15% da corrente líquida em Mato Grosso.
Os casos analisados tiveram como referência o período dos mandatos do ex-governador Silval Barbosa (PMDB) (2010-2014). Uma das principais falhas administrativas identificada pela comissão foi a concessão de isenção fiscal com percentual acima do permitido em lei e também de aprovação de pedidos sem a aprovação do Conselho de Desenvolvimento Empresarial (Cedem).
Conforme a CPI, duas empresas identificadas com irregularidades assinaram termo para devolução de dinheiro. A JBS se comprometeu a pagar R$ 380 milhões ao Estado e a Votorantim, R$ 253 milhões.
Estudo sobre incentivo deve ser lançado neste ano
A Secretaria de Empreendedorismo e Desenvolvimento, adjunta da Sedec (Secretaria de Desenvolvimento Econômico) prepara um estudo sobre as atividades de empresas beneficiadas com programas de incentivo fiscal. O levantamento, o primeiro desde o lançamento da primeira norma sobre o assunto, em 2003, deve cobrir análises sobre a geração de emprego, atividades sociais e a situação do setor industrial em Mato Grosso por meio do impacto de incentivos.
O secretário Leopoldo Rodrigues de Mendonça diz que a previsão é que o estudo seja concluído e divulgado ainda neste ano.
“É uma falha muito grande no acompanhamento dos incentivos ainda não ter um estudo sistemático sobre as contrapartidas de empresas beneficiadas. É algo cobrado pelo Ministério Público, pela população e ajuda até mesmo na fiscalização do Estado da área”.
A falta de dados hoje coloca em xeque a importância dos incentivos fiscais concedidos pelo Estado, visto não ser possível dimensionar o impacto dos programas no desenvolvimento econômico de Mato Grosso.
A ineficiência levou, por exemplo, a promotora Ana Cristina Bardusco a pedir a anulação de leis que normatizam o assunto, visto que, segundo ela, as empresas ainda não apresentaram resultados satisfatórios.
“Entendemos o questionamento da promotora, e estamos preparando o estudo justamente para prestar conta sobre os programas de incentivos fiscais. Mas posso garantir que há vários casos de empresas que estão gerando mais de mil empregos numa pequena cidade, com uma economia muito carente”.
Os incentivos fiscais, concedidos por quase todos os Estados brasileiros, também são considerados inconstitucionais por falta de aprovação das leis pelo Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), que deve votar, unanimemente, as propostas do Estado. A situação deve ter legalidade a partir da Lei Complementar 160 sancionada em agosto deste ano pelo presidente Michel Temer.
Silval e Nadaf operaram R$ 30 milhões em propina
O ex-governador Silval Barbosa conta em delação premiada à Procuradoria Geral da República (PGR) que os esquemas de propinas por meio de incentivo fiscal tiveram início, em seu governo, em 2011, ano em que iniciou contatos com representantes do frigorífico JBS.
A primeira reunião aconteceu com o presidente do grupo, Wesley Batista, por intermediação do empresário Fernando Mendonça, parente da família Batista. Silval afirma que pedira a Wesley Batista a liberação de dinheiro para quitar dívidas de sua campanha ao governo de Mato Grosso em 2010, e em troca foi negociada a concessão de incentivo ao JBS.
O primeiro repasse foi de R$ 7 milhões, que até 2014 chegariam a R$ 30 milhões transferidos em parcelas por meio de manobras nas leis de concessão de benefícios. As transferências eram depositadas em nome dos empresários Francisco Carlos Ferres, conhecido como Chio Badoti, e Valcir José Piran, o Kuki, a quem o ex-governador devia cerca de R$ 40 milhões.
Os números de contas para beneficiários eram repassados por Pedro Nadaf, então secretário de Indústria e Comércio do governo Silval Barbosa.
Outras partes das propinas eram pagas pela JBS à empresa Trimec, de Walderley Faccheti Torres, por onde foram transferidos R$ 9 milhões. Pedro Nadaf era a pessoa responsável por coordenar essa operação com Wanderley. Nadaf combinou com Wesley Batista, também, receber R$ 4 milhões em 2015.
O empresário Wesley Batista afirmou também em delação premiada que pagou valores de notas frias emitidas pela empresa do ex-secretário Pedro Taques e de outros dois negociadores do grupo de Silval Barbosa para cobrir acordos de propina.
Conforme Wesley, o pagamento de propina era realizado em troca da redução do percentual de impostos pagos pela JBS ao governo. O empresário disse que nos anos de 2011, 2012 e 2013 pagou cerca de R$ 30 milhões.