Jurídico

Sem previsão em edital, é ilegal avaliar autodeclaração racial de cotista, diz juiz

Instituir comissão para analisar a autodeclaração racial do candidato cotista, sem que exista previsão para isso em edital, é ilegal e representando inovação indevida. O entendimento é do juiz Raphael Cazelli de Almeida Carvalho, da 8ª Vara Federal Cível de Mato Grosso. 

O magistrado suspendeu processo disciplinar aberto contra três estudantes de medicina da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). O procedimento poderia culminar na perda de vaga e de todo o percurso acadêmico cumprido. A decisão é de segunda-feira (18/1).

De acordo com o processo, a UFMT instituiu uma comissão de heteroidentificação para complementar a autodeclaração de candidatos negros, pardos e indígenas. No entanto, as matrículas analisadas foram as de estudantes já devidamente matriculados e que assinaram contrato prevendo apenas a necessidade de autodeclaração para ingresso como cotista. 

Segundo a decisão, não ficaram claras as regras e critérios adotados pela banca. O magistrado também destacou que os autores não tiveram direito à ampla defesa. 

"Apesar da obrigação da administração pública de corrigir irregularidades, inclusive de seus próprios atos, é certo que essa autorização normativa para revisão de ato de matrícula, na hipótese de verificação de irregularidades, se submeterá a alguns limites orientadores do ato administrativo, sob pena de fragilização da segurança jurídica, primordial em qualquer espaço social/humano, quanto mais em ambiente acadêmico que exige estruturação emocional a partir de regras sólidas que tragam garantias de desenvolvimento satisfatório", afirmou o juiz. 

Ainda de acordo com ele, os autores foram submetidos "a uma banca de heteroidentificação sem conhecer os critérios a serem adotados, nem o que se espera da banca e ainda tiveram decisões desfavoráveis a sua permanência na instituição sem a motivação necessária para se permitir a sua defesa, decisões essas, inclusive, que poderão acarretar o cancelamento da matrícula após anos de investimentos estudantis". 

Decisão semelhante
Além do caso julgado pela 8ª Vara, outro processo semelhante foi apreciado pela 2ª Vara Federal Cível de Mato Grosso. Esse envolvia um número maior de alunos: oito no total, entre estudantes de medicina, medicina veterinária, psicologia e engenharia florestal. 

Depois de serem submetidos à comissão de heteroidentificação, feita com base em registros fotográficos, foi aberto processo disciplinar para averiguação de fraude.  

"Ainda que a administração possa — e deva — investigar fraudes, é certo que tal investigação encontra limites em outros postulados que regem a atividade administrativa. Com efeito, admitir que, após anos do início do curso, a administração invalide o ingresso do discente, com base em análise posterior, seria contrário à eficiência e economicidade na aplicação dos recursos públicos, na medida em que todo o recurso empregado na formação do profissional seria inutilizado", afirmou o juiz Hiram Armenio Xavier Pereira. A decisão é do último dia 14. 

"Outro ponto que merece destaque", prossegue o magistrado, "é que, à época do processo seletivo ao qual se submeteram os impetrantes, não havia previsão da etapa de heteroidentificação, mas apenas a autodeclaração". "Desta maneira, se o edital é a lei do concurso e vincula as partes — candidato e administração pública —, submeter os candidatos a uma comissão viola o princípio da vinculação ao edital, vários anos após concluído o processo de ingresso." 

O advogado Fernando Cesar de Oliveira Faria atuou nos dois processos. Para ele, muito embora seja discutível se há ou não a necessidade de controlar possíveis fraudes por meio de comissões, o único critério exigido aos cotistas foi o da autodeclaração.

"A UFMT cometeu o descalabro de reprovar todos, sem qualquer fundamentação, ou seja, bateu o carimbo e reprovou 'geral', por atacado", diz Faria. Isso, prossegue, faz com que a conclusão da comissão seja nula por ausência de motivação. 

Clique aqui para ler a decisão da 8ª Vara
MS 1000232-59.2021.4.01.3600

Clique aqui para ler a decisão da 2ª Vara
MS 1000313-08.2021.4.01.3600

Redação

About Author

Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.