Ahmad Jarrah
O colapso da Saúde Pública culminou na greve dos médicos do município. Sem negociação, e declarada ilegal, a greve declarada no dia 7 de março, parece estar longe do fim. Em declaração recente, o secretário de saúde alegou que a greve dos profissionais demonstra negligencia com a saúde dos usuários do SUS.
Em resposta às provocações, a presidente do Sindicato dos Médicos de Mato Grosso, Sindmed-MT, Eliana Siqueira, fez uma campanha na rede social Facebook chamada #VeMPROSUS. Nela, a presidente chama os poderes executivo, legislativo e judiciário para passarem um dia conhecendo a realidade do SUS, em especial a primeira dama Virgínia Mendes.
Em um das publicações, Eliana expõe: “Será que nos acostumamos a trabalhar em hospitais imundos? Será que nos acostumamos a esperar com dor numa maca dura num corredor? Não, não mesmo! Por isso estamos convidando todas as autoridades: poder judiciário, legislativo e executivo, comentaristas políticos da TV, rádios e jornais: #vemprafiladosus Vem passar 24 h num plantão com a gente e aí veremos se não mudarão de opinião quanto à necessidade de priorizar a saúde e seus trabalhadores! Você aí grave o seu convite pra quem você quiser que tenha essa experiência revolucionária de experimentar entrar na fila do SUS (sem apadrinhamento político) e aguardar por exames, consultas, aguardar por um leito de hospital num corredor do PS sem banheiro! Vem lutar pela saúde de Cuiabá!”
O Circuito Mato Grosso acatou o convite, e não gostou do que viu.
SEM PROGRESSOS, PROBLEMAS CONTINUAM
Superlotação. Esse é o diagnóstico facilmente feito por pacientes e profissionais da saúde do Hospital e Pronto Socorro Municipal de Cuiabá (HPSMC) há anos. O que deveria ser prioridade em qualquer gestão municipal, em Cuiabá o serviço é tratado com desdém.
Considerado a maior e principal referência de saúde no Estado, o Pronto Socorro está em funcionamento há mais de 30 anos e nunca passou por processo de ampliação, apenas reformas pontuais. Com isso, pacientes que chegam à unidade se acomodam como podem.
Macas dispostas nos corredores do hospital, acompanhantes fazendo trabalho de técnicos de enfermagem, e até ventilador trazidos de casa para amenizar o calor foram vistos na ala vermelha, amarela e de sutura do Pronto Socorro – alas mais comprometidas. Os pacientes ainda enfrentam a falta de medicamentos, de suplementos e de especialistas.
A falta de dignidade enfrentada por quem precisa do serviço é a pior. Na entrada, para serem atendidas, pessoas enfrentam o calor e a chuva em filas imensas. E ao conseguirem atendimento, são recebidas em uma unidade com pacientes com diversos tipos de patologias agrupados.
Há um ano o Circuito Mato Grosso denunciou em uma matéria a má qualidade dos serviços do Pronto Socorro Municipal. De lá para cá, pouco foi feito. Um médico do Pronto Socorro Municipal, que preferiu não se identificar, revela que houve melhorias apenas em relação a plantões dos médicos. Antes com furos na escala, e atualmente corrigido pela administração da unidade. Os problemas decorrentes da superlotação, como falta de suplementos, de especialistas e, principalmente, a falta de leitos, permanecem.
“Tem três pacientes de alta na UTI, mas nenhum deles consegue sair de lá, porque não tem espaço na enfermaria. E se esses pacientes não saem da UTI, não há como receber outros que têm necessidade de serem encaminhados ao tratamento intensivo”, relata o médico.
Segundo o médico e a administração do Hospital – através da assessoria de imprensa – a superlotação do Pronto Socorro acontece porque a unidade não atende apenas pacientes de Cuiabá. Há pacientes de todo Mato Grosso, estados vizinhos e até de outros países, como Haiti e Bolívia.
Na terça-feira (15), de acordo com o Núcleo Interno de Regulação do Pronto Socorro, a capacidade da unidade estava sobrecarregada em 62 leitos. O hospital conta com 212 leitos, e no dia, chegou a 274 pacientes. Os casos mais graves são os da sala de sutura que deveriam receber apenas cinco pacientes, e contabilizava 44, e o da “Sala Vermelha”, que deveria receber apenas sete pacientes, e na terça-feira contava 37. Os pacientes excedentes ocupavam lugares nos corredores.
Com a amostra desses dados, a pergunta que permeia o coletivo é: se há tanto tempo o problema é o mesmo, por que não é solucionado, e nem amenizado? Para o médico, um dos pontos de melhorias para a Saúde Pública seria um enfoque maior na saúde primária – a prevenção das enfermidades. O médico também aponta para a má gestão dos recursos da Secretaria de Saúde, feita pelo Município.
“A gente sabe que a Saúde tem dinheiro, só que é mal gerido. Gasta-se muito com serviços que não demandam tanto, e onde necessitam de dinheiro, como o Pronto-Socorro, pouco é aplicado. Aqui é o lugar onde é recebido um grande volume de pacientes, onde você ‘segura a bomba’, e para onde são destinados apenas R$ 2 milhões?”.
O Pronto-Socorro é o hospital que atende demandas de urgência e emergência da Saúde Pública, contudo o médico denuncia que chegam a atender pacientes que deveriam estar em Unidades de Pronta Atendimento (UPA) e Policlínicas.
“Atendemos porque as policlínicas, muitas vezes, não atendem adequadamente devido à superlotação. Isso, porque a Unidade Básica de Saúde não existe no município. Então, a atenção primária não funciona, superlota a secundária, e acabam superlotando o Pronto-Socorro, que é a terciária”.
ENFERMARIA
Ao contrário dos corredores que rodeiam as salas vermelhas e de sutura, nos corredores da enfermaria do Hospital, a superlotação não é mais vista. Não há macas pelos corredores, não há mais pacientes urrando de dor. A segunda vista, um pedido de socorro e misericórdia.
A denúncia de quem vive nesse local é grave: não há assistência. Para preservar a identidade e evitar retaliações dos pacientes, a reportagem do Circuito Mato Grosso preservará os nomes – de pacientes, e acompanhantes.
Comida, medicado e até curativos são os acompanhantes e/ou visitas que ficam incumbidos. Caso não o faça, a certeza de ver pai, amigo, marido ou irmão morrerem aos poucos.
Três, dos 16 pacientes que ocupam uma das salas estão com infecção severa. Três pessoas que merecem cuidados especiais, em um local adequado, sendo cuidadas pelas mãos de pessoas que não têm qualificação – correndo risco de ficarem doentes também.
É um verdadeiro “seja o que Deus quiser” e brigas sem fim, que geram desconforto e desalento a todos. A escara na região das nádegas de um senhor, uma senhora que geme com respirador, um adolescente sem esperança de cura, o jovem se recuperando de uma perna amputada. Se não são os acompanhantes para cuidarem da lacuna deixada pelo sistema, não há cura, nem esperança.
Um dos entrevistados disse tratar não só do parente que acompanha, mas sim de quem precisar. Um selo com o próximo que o Pronto Socorro não demonstra ter. “Eles não são qualquer coisa. Eles sentem. A gente ama demais quem está ali naquela maca”, afirma.
De acordo com a coordenadoria Administrativa do Pronto Socorro, o hospital integra o Programa SOS Emergência, do Governo Federal. O programa pretende promover o enfrentamento das principais necessidades desses hospitais, melhorar a gestão, qualificar e ampliar o acesso aos usuários em situações de urgência, reduzir o tempo de espera, e garantir atendimento ágil, humanizado e com acolhimento, além de melhorar as condições de trabalho nessas unidades.
Com a realidade vivida pelos profissionais e pacientes, essa proposta é quase utópica – pois, os profissionais trabalham no limite da exaustam. “O atendimento humanizado é fundamental em uma unidade de saúde. Mas, como dar atendimento humanizado, em um hospital superlotado? Onde um técnico de enfermagem deveria atender no máximo quatro pacientes, e o número de pacientes é muito maior. Da mesma forma, um médico, que está trabalhando na sala vermelha deveria ter no máximo dez leitos, está trabalhando com 40 leitos, fora os que não param de chegar. É humanamente impossível realizar esse tipo de atendimento”, desabafa o médico.
O presidente do Conselho de Enfermagem (Coren), Eleonor Raimundo, assume que os enfermeiros têm, de fato, uma demanda acima do estipulado em lei na unidade. “Nós, do Coren, já estivemos no Pronto Socorro por diversas vezes, já entregamos um levantamento dizendo que a quantidade de enfermeiros é insuficiente para a demanda do Hospital. As condições de trabalho da enfermagem não são boas. E, aliado a isso, há ainda as deficiências em relação ao material”, denuncia.
Dentro disso tudo, há ainda uma admiração, por partes dos pacientes e familiares, por quem faz acontecer ali dentro. “Não são todos os médicos e enfermeiros que são ruins ali. Tem muita gente boa e que trata os doentes com respeito”.
SÃO BENEDITO
Criado para ser referência para as cirurgias de alta complexidade (neurológica, cardiológica, ortopédica e bariátrica) o Hospital São Benedito pode se tornar um “elefante branco”. Segundo a enfermeira Daniela* (nome fictício) – que entrou no Hospital São Benedito no início das operações em julho de 2015 por meio de contrato celetista. Ela conta que faltavam itens básicos, como rede de oxigênio, ar comprimido, carrinho de enfermagem e até saco de lixo! “As lixeiras enchiam e pedíamos que o pessoal da limpeza fizesse a troca. Eles perguntavam como iriam fazer a troca se não havia sacos novos?”, conta.
A profissional conta, ainda, que o sangue recebido era armazenado em isopores, totalmente fora do padrão, pois nos postos de enfermagem localizados em cada andar do hospital não existiam geladeiras. “A situação é a mesma até hoje, pois tenho colegas que continuam lá”.
Daniela diz que não existe estrutura para recebimento de pacientes em estado grave vindos do Pronto Socorro Municipal . “Receber um paciente só pra dizer que está num hospital bonito?” Mais um fato grave apontado pela enfermeira é que apenas um médico plantonista ficava responsável pelo hospital inteiro, com a equipe de enfermeiros. “Na maior parte das vezes, era um anestesista… Eu ouvi do próprio médico que ele não iria se responsabilizar pelo hospital inteiro, passando muita responsabilidade para a equipe de enfermagem”.
Outro ponto falho é que os postos de enfermagem não foram construídos com lugar para repouso dos profissionais, o que é previsto por lei. “A direção dizia pra gente que era assim mesmo e que não iria mudar e não haveria repouso. Eles estavam loucos! Preferi sair a correr o risco de perder meu registro no Coren”, desabafa.
De acordo com o médico e diretor técnico do Hospital São Benedito, Huark Correia, as acusações da enfermeira não procedem. O médico esclarece que quanto à falta de limpeza do local, pode ter acontecido foi na troca de empresa dos serviços terceirizados, mas que isso não deve ter passado de um dia.
Em relação às bolsas de sangue, o tratamento dado a elas é adequado. O diretor explica que como o serviço não é terceirizado, eles recebem bolsas de sangue direto do Hemocentro de Mato Grosso e do Pronto Socorro. “Nós não temos obrigação de unidade transfusional no hospital. Os hemoderivados são buscados na hora, e transportados nestas caixas de isopor – que são adequadas”, explica.
Ainda segundo Huark, não há falta de plantonista no hospital. “Nós temos um médico plantonista, mais um anestesista em plantão presencial e todas as equipes cirúrgicas, por força de contrato, uma vez acionadas, em 15 minutos devem mandar alguém para o hospital. É bom lembrar que somos um hospital de atendimento eletivo, e não um hospital de urgência e emergência”, expõe.
A enfermeira ainda denuncia a falta de demanda sobre um lugar de repouso que lá não existe. “Nenhum dos hospitais de ponta no Brasil tem esse lugar de repouso dos enfermeiros. A lei manda, em um plantão de 12h, ter duas horas de descanso, não para dormir. Apesar disso, nós temos um local de descanso, que não é definitivo, por entendermos que alguns profissionais trabalham em regime de escala e merecem um local para descanso, mas não é obrigatório”.
No Hospital São Benedito já foram realizadas 1900 cirurgias, em sete meses de funcionamento. A média do custeio mensal da unidade é de R$ 3,2 milhões. Que pode vir a aumentar, já que o primeiro andar – destinado a cirurgias cardíacas, deve ser inaugurado no mês de abril.
UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL
Considerada a obra mais importante dos últimos 30 anos para a saúde de Cuiabá e do Estado, o novo Pronto Socorro de Cuiabá está em fase de construção. A unidade promete desafogar o atendimento da saúde pública. Para isso, contará com três grandes setores, 315 leitos, sendo 40 para Unidades de Terapia Intensiva (UTI), um Centro de Diagnósticos e um Centro Ambulatorial.
Enquanto a nova estrutura não vem, uma das medidas para redução da superlotação é a reforma do 3° andar do Hospital e Pronto-Socorro Municipal, fechado desde 2011. Com início em março de 2014, e com diversos atrasos, a previsão de inauguração é que seja em abril deste ano. O andar abrigará a Ala Pediátrica do hospital, com 10 leitos de UTI e 23 leitos de enfermaria.
OUTRO LADO
A Coordenadoria Administrativa do Pronto Socorro, por meio da assessoria de comunicação da Prefeitura de Cuiabá encaminhou nota esclarecendo os problemas apontados pelos médicos e pacientes e comprovadas pela reportagem do Circuito Mato Grosso.
Segundo a coordenadoria, a unidade possui um total de 271 leitos de ortopedia, Clínica cirúrgica, UTI, Infectologia, Sala Amarela Infantil, Sala Verde Infantil, Clínica Médica, CTQ, Sutura, Sala Vermelha e Leitos Extras. Dado que diverge do passado pelo médico, que consta 212.
Ainda foi esclarecido que a atual gestão do município, encabeçada pelo secretário de saúde do município, Ary Soares, e do Pronto-socorro “tem consciência de que para prestar assistência de qualidade é necessário o quadro completo de funcionários para atender a demanda. No momento, a administração da unidade aguarda o chamamento de aprovados no concursos público. Devido à alta demanda e superlotação constante do HPSMC, uma unidade porta aberta, que atende a todos, os acompanhantes auxiliam na realização de cuidados básicos, porém, cuidados complexos são restritos à equipe de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem). Não há nenhum registro de reclamações por parte de acompanhantes, nesse sentido”.
E acrescenta que a estrutura de urgência e emergência do HPSMC passará em breve por reformas.