Dia de escrever crônica adiantada. Elas existem e são provocadas pelos feriados. Inúmeros. Ultimamente caindo sempre as sextas, meu deadline usual.
Requerem uma mudança básica no andar das atividades semanais com menos tempo para acumular impressões a serem impressas semana sim e, quase sempre, na seguinte também. Falho, mas elas fazem parte da regra que tem que ter exceções.
Isso requer um estímulo extra para não perder o tom e o dom de escribar com uma certa constância. Ainda mais nesse formato incerto e pouco sabido apesar da brincadeira já estar rolando desde 24 de agosto de 2004.
Por ser uma data significativa sempre será um marco na história das crônicas do Sem Fim. Foi na abertura da exposição dos 50 anos da morte de Getúlio Vargas que elas começaram a serem escritas.
Foram os olhos dos visitantes ao Museu da República que destamparam meu frasco de letrinhas. Ele me foi dado anos antes por Emília, a boneca de pano falante do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato.
Na ocasião participando de uma das incríveis aventuras com Narizinho, Pedrinho e a turma do sítio, aceitei o presente sem ter noção do alcance do seu significado.
Joguei no fundo da minha frasqueira de viagens infantis e deixei por lá rolando de um lado para o outro. Até que, como a boneca que falava asneiras advertiu, ele pudesse – e como – ser útil.
Nesse meio tempo de muitos anos e algumas décadas pipocamos por muitas histórias e lugares aprendendo um pouco sobre quase tudo. Eu, a malinha e, dentro dela, a máquina fotográfica e o frasco de letrinhas.
Algumas vezes tentei abri-lo e derramar um pouco do seu conteúdo em papéis, áudios e até em vídeos. O resultado não foi nada mau.
Mas ainda sentia que faltava um ingrediente para deixar fluir o que via, lia e apre(e)ndia. Não, não estava faltando forma nem expressão que essas foram lapidadas desde sempre.
Era algo na essência, no olhar. No desembestar como dizia Emília, ao destravar a língua falando que nem louca, tagarelando pelos cotovelos quando ganhou o dom da fala numa das Reinações de Narizinho.
O dom chegou para mim num reflexo. Os vi nos olhos de quem vagava nos lugares onde Getúlio viveu seus últimos dias cinquenta anos depois. Histórias de devoção, amor e intimidade de vidas inteiras. Ali, esse reflexo ganhou forma. Precisou ser incontrolavelmente extravasado.
Ele se mantém até hoje nos sinais que fazem a caneta deslizar ligeira pelas páginas em branco do caderninho. Sem linhas para delimitarem o tempo e o espaço ou impedirem o voo inquieto e ágil da imaginação.
Serve para quem, como eu, consegue ver nos reflexos (olha eles de novo aí) dos vidros e gradeados que cercam a vida dos habitantes encarcerados da selva de pedra que virou Ipanema, um convite irrecusável.
Aquelas ilhas ensolaradas do Atlântico refletidas nos vidros indicam o caminhoirresistível para deixar de lado a realidade assustadora que nos cerca e quase domina.
É o momento de concretizar o texto da semana deixando aberto o frasco de letrinhas, destampado nas areias convidativas do Arpoador.
Dessa vez sai dele uma homenagem a todos os dias dos livros. Especialmente os infantis. Aqueles que, se você tiver a mesma sorte, nos acompanharão pela vida.
Viva o Sítio. O do Picapau Amarelo. Salve Monteiro Lobato!
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “Arpoador”, do SEM FIM…