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Quilombolas resistem entre desmatamento e garimpo ilegal enquanto aguardam titulação de terras

Mato Grosso lidera a perda de cobertura florestal dentro de territórios quilombolas da Amazônia Legal, com uma redução de 27,5% das áreas entre 1985 e 2024, segundo levantamento inédito obtido por A Lente e InfoAmazonia. Além do desmatamento, as comunidades quilombolas enfrentam pressões do garimpo ilegal e da ausência de titulação definitiva de suas terras. O estado possui quatro territórios quilombolas oficialmente reconhecidos, mas nenhum deles teve o processo de regularização fundiária concluído pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O território de Mata Cavalo, localizado em Nossa Senhora do Livramento, é um símbolo dessa luta. Reconhecido pelo Estado em 1998 e pela Fundação Cultural Palmares em 1999, o quilombo abriga 419 famílias descendentes de antigas matriarcas. Mesmo com o processo de titulação aberto em 2004 e um decreto presidencial de desapropriação publicado em 2009, o título coletivo nunca foi emitido. Em meio à demora, os moradores convivem com ameaças de despejo e com o avanço do garimpo ilegal, que já atinge parte das comunidades de Águaçu de Cima e Mutuca.

Situação semelhante é vivida por outras comunidades quilombolas de Mato Grosso, como Campina de Pedra, Laranjal e Lagoinha de Baixo, que também aguardam a conclusão dos processos no Incra. Segundo o levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o estado abriga 97 quilombos, mas apenas oito estão dentro de territórios oficialmente delimitados. Os outros 89 permanecem fora dessas áreas, ainda mais vulneráveis a invasões e pressões econômicas.

No Vão Grande, entre os municípios de Barra do Bugres e Porto Estrela, o risco vem de projetos de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e de novas pesquisas minerais. O agricultor Salustiano de Lima, o Seu Salú, de 71 anos, conta que a comunidade já enfrentou tentativas de barramento do rio Jauquara, fonte de água e sustento das famílias locais. Em 2021, os moradores conseguiram barrar uma das construções na Justiça. Mesmo assim, em 2024, dois novos pedidos de exploração mineral foram protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM), acendendo o alerta entre os quilombolas.

A professora Maria Helena Conceição, moradora da comunidade Camarinha, denuncia a ausência de consulta prévia – garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – antes de qualquer pesquisa mineral. Segundo ela, o território sofre também com o desmatamento ilegal. “Durante meses, caminhões entravam vazios e saíam cheios de madeira nas madrugadas. Fizemos boletim de ocorrência, mas nada aconteceu”, relata.

As ameaças não se limitam ao Vão Grande. No quilombo do Chumbo, em Poconé, dentro do bioma Pantanal, moradores convivem com os impactos das lavouras e do uso de agrotóxicos. Em 2021, uma pulverização irregular contaminou a comunidade vizinha do Jejum, provocando crises respiratórias e irritações. Um estudo da UFMT e da ONG FASE detectou oito tipos de agrotóxicos na água local – cinco deles banidos na União Europeia e no Canadá. “Estamos cercados por fazendas e agrotóxicos. Vivemos sufocados”, lamenta a professora Josiane Luiza de Lima, de 47 anos.

Para o procurador da República Ricardo Pael, o principal obstáculo à titulação das terras quilombolas é a falta de orçamento federal. “O valor disponível no Incra nacional não paga uma fazenda em Mato Grosso. Não há dinheiro para desapropriar”, afirma. De acordo com estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), entre 2014 e 2022, o orçamento destinado à regularização fundiária de quilombos caiu 99%, reduzindo a capacidade de execução dos processos.

Ainda assim, a resistência segue viva. Mulheres como Conceição Aline de Lima, presidente da Associação dos Produtores Rurais da Camarinha, lideram as lutas por reconhecimento e segurança. Mesmo sob ameaças, elas mantêm vivas as tradições, a educação e a fé. No Chumbo, em Poconé, a Festa de Nossa Senhora Aparecida é um símbolo de união e esperança. “A titulação é o que pode garantir o futuro das próximas gerações”, resume Maria Helena. “Enquanto ela não vem, a gente segue lutando – entre a floresta e o garimpo.”

joaofreitas

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