Encerrou-se na noite de quarta-feira (4) um dos maiores capítulos políticos e jurídicos da história recente do país. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) negou o habeas corpus da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com voto de desempate da Ministra Cármen Lúcia que seguiu o voto do relator e negou o pedido da defesa. Assim, o petista poderá ser preso nos próximos dias. Notório não só pelo seu personagem, mas também pelo tema, este julgamento levantou muitos debates nas últimas semanas.
Muitos juristas, advogados, magistrados, jornalistas e intelectuais do mundo jurídico se perguntavam se este recurso serviria somente para o caso de Lula ou poderia servir para mudar a orientação jurídica para casos semelhantes no país. Todos buscavam responder uma pergunta crucial – quando uma pena em prisão pode começar a ser cumprida? Após a confirmação em um colegiado por desembargadores (2ª instância)? Ou somente depois que todos os recursos e ações judiciais tenham transitado em julgado?
A decisão dos ministros de ontem confirma o entendimento que o Supremo teve em 2016 sobre o tema. As condenações em prisão podem ser cumpridas após a ratificação por um colegiado de desembargadores. Para os magistrados do STF, não há consequências para o princípio de presunção de inocência se a sentença foi reafirmada duas vezes (primeiro, pelo juiz; segundo, pelos desembargadores). A medida, porém, levanta muitas controvérsias no meio jurídico.
Para os que são contra a prisão em segunda instância, a jurisprudência fere a Constituição Federal. Segundo o 57º inciso do Artigo 5º, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A norma já é conhecida pela sociedade pelo aforisma popular – “todo mundo é inocente até que se prove o contrário”. Logo, a orientação atual vai contra o princípio de presunção de inocência – um direito constitucional garantido em relação aos acusados por infrações penais.
O princípio entende que uma pessoa condenada possa recorrer para uma instância ou tribunal superior – um direito garantido por Constituição a todos os brasileiros. Até o julgamento destes recursos o condenado não poderá ser considerado oficialmente culpado. Consequentemente, ele não pode também ser preso, pois há chances de que ele seja absolvido de sua pena.
Esse é o principal cerne da argumentação da defesa do ex-presidente Lula. Uma pessoa só poderia ser considerada culpada e presa depois do esgotamento de todos os recursos na Justiça. O objetivo é evitar que injustiças sejam cometidas aos condenados por uma sentença, como, por exemplo, uma prisão. Simbolicamente, a cadeia é a maior condenação que o Estado pode dar a um indivíduo porque tira o direito do cidadão de ir e vir, ou seja, a sua liberdade.
Em Mato Grosso, a negativa do HC do Lula pode influenciar as ações dos denunciados em operações que investigam crimes de corrupção no Estado. Se condenados em primeira instância, as prisões podem ser expedidas após a confirmação de um colegiado de desembargadores na segunda instância. Isto serve para os políticos, empresários, ex-secretários e servidores públicos condenados, principalmente pela juíza Selma Arruda, da Vara Especializada contra o Crime Organizado, por exemplo.
É o caso dos ex-deputados José Geraldo Riva e Humberto Melo Bosaipo, condenados a 44 anos e 18 anos e quatro meses de prisão, respectivamente. Também, do ex-secretário de Fazenda Éder Moraes que tem uma pena somada de mais de 115 anos de prisão. Todas estas e outras condenações podem ser direta ou indiretamente influenciadas pelo julgamento do HC de Lula.
Para Igor Roque, presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), o julgamento do HC de Lula pode influenciar ações judiciais de qualquer pessoa, e não somente de políticos e empresários condenados em esquemas de corrupção. No começo desta semana, a Anadef não reconheceu a prisão após a condenação em segunda instância. Além disso, pediu ao Supremo que vote pelo cumprimento da pena somente após o trânsito em julgado dos recursos.
“O grande problema é que sob a justificativa de combater a corrupção, o que a gente vai ver, na verdade, é um prejuízo e uma violação de direitos fundamentais de inúmeras pessoas, e não somente de políticos corruptos. Se o problema é combater a corrupção, então que se alterem as leis que se agravem as penas para este tipo de crime. E não simplesmente determinar a prisão violando a Constituição Federal com uma condenação em decorrência de segundo grau”, criticou.
Já para o advogado Marco Antônio Soares de Magalhães, que é presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso (OAB-MT), o julgamento do HC de Lula vai corrigir uma confusão no entendimento sobre a prisão em segunda instância. Ele acredita que é possível a prisão após a ratificação de um colegiado, mas que não é obrigação de um tribunal expedir o mandado. Ele ainda afirma que o recurso da defesa do petista não vai influenciar os outros casos, já que se trata de um caso "julgado num caso específico".
"Eu acho que não vai influenciar em nada. Por quê? Porque ficou bem claro que este julgamento é um julgamento do Lula. Um caso específico. É óbvio que como é o Lula, o que fizer tem a tendência de alguém que se espelhe nele. Mas foi falado muito claramente que o caso é particular. Esse entendimento, eu penso, que eles vão clarear dizendo que é sim é possível a prisão, mas que não é obrigação do juiz no tribunal decretar", comentou.
No entanto, a história nem sempre foi assim. Antes de 2009, um juiz podia expedir o mandado de prisão a qualquer momento, após decidir a sentença de um processo judicial. Tudo mudou depois deste ano. O STF foi provocado a julgar e a analisar o 57º inciso do Artigo 5º da Constituição Federal.
A mais alta Corte do país nunca tinha analisado tal questão anteriormente. Para o Supremo ser pautado, a ação precisa envolver alguma matéria constitucional. Eles nunca tinham parado para avaliar se as prisões poderiam ser executadas antes do término do julgamento de todos os recursos.
O processo que levantou a discussão se tratava de um habeas corpus. Ele pedia que um fazendeiro de Minas Gerais, que foi condenado a sete anos e meio de prisão por tentativa de homicídio, aguardasse em liberdade até o julgamento do último recurso. Após o Plenário do STF discutir o assunto, eles decidiram que a prisão só poderia ser cumprida após o julgamento de todos os recursos possíveis, em qualquer instância.
O caso iniciou um novo marco na jurisprudência nacional. Por sete anos, muitos réus puderam aguardar em liberdade enquanto estas ações protelavam o seu cumprimento de pena. Isto criou um efeito controverso na Justiça e muito discutível entre os jurídicos. Muitos condenados não chegaram a cumprir suas penas. Com a demora do julgamento dos recursos, muitos crimes acabavam por prescrever.
Em 2016, o Supremo reviu esta jurisprudência. A partir desse ano, um condenado poderia cumprir a sua pena após a confirmação em segunda instância. Segundo o entendimento do Plenário, tendo a condenação sendo revista e reafirmada por duas vezes, não há consequências para a presunção de inocência.
No entanto, a questão ganhou peso para a defesa da prisão somente após o trânsito em julgado. Dois dias antes do julgar o HC, a defesa de Lula apresentou um parecer elaborado pelo jurista José Afonso da Silva, que é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ele é uma das referências na área do Direito Constitucional e também para os próprios ministros do Supremo. Estuda há mais de 40 anos como analisar e interpretar as normas da Constituição Federal. Sua tese de livre-docência na USP foi justamente sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, e foi defendida em 1969.
No documento, o jurista reafirmou o 57º inciso da Constituição. Em uma interpretação literal, a Carta Magna dos direitos do brasileiro impede o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado de todos os recursos. Qualquer entendimento contrário é um confronto com o dispositivo constitucional, segundo o professor.
“O princípio ou garantia da presunção de inocência tem a extensão que lhe deu o inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal, qual seja, até o ‘trânsito em julgado da sentença condenatória’. A execução da pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito fundamental.
[…]. Dá-se aí a preclusão máxima com a coisa julgada, antes da qual, por força do princípio da presunção de inocência, não se pode executar a pena nem definitiva nem provisoriamente, sob pena de infringência à Constituição”, escreveu.
Igor avaliou como perfeita a análise do professor José Afonso da Silva. “É uma análise estritamente técnica. Extremamente respeitado na Academia e nos tribunais. Autor de inúmeras obras e inúmeros livros. Escreve de maneira imparcial. E ele refuta com veemência e clareza, todos os argumentos e decisões para determinar a prisão
em segunda instância ou com a condenação em segunda instância”, disse.
Já Marco Antônio ainda não consultou o parecer, mas ele comenta que a posição defendida não vai diferir da Constituição. “Não sou favorável. Sou contra o Lula. Mas eu não posso ser contra o que diz a lei. Eu acho que todos nós temos que estar sujeitos às leis do país. Temos que estar sujeitos ao que diz a Constituição. Não tem ninguém que está acima da Constituição. Não importa se é o presidente atual, ex-presidente ou Jesus Cristo”, disse.
Mesmo com o habeas corpus negado, há uma última luz no túnel para o ex-presidente. Trata-se de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, que podem mudar a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância. Eles podem reverter a decisão do habeas corpus concedido ontem e deixa-lo livre até que todos os recursos sejam julgados pela Justiça. Além disso, essas ações podem também influenciar o entendimento sobre quando se deve começar o cumprimento de uma pena em prisão.
AS AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE
Contudo, o julgamento do habeas corpus de Lula é um caso individual. Sozinho, ele não teria força para mudar a jurisprudência no país. Esta é a opinião de uma boa parcela de profissionais do mundo jurídico. Peso maior teria a chamada Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), que pode redefinir a orientação jurídica
atual sobre a prisão em segunda instância.
As ADCs de números 43 e 44 foram propostas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) e pela Ordem de Advogados do Brasil (OAB). Eles defendem que as penas só podem ser cumpridas após o julgamento de todos os recursos em todas as instâncias. Por isso, eles pedem aos ministros do STF que mudem o entendimento atual sobre o tema.
Porém, a ministra Cármen Lúcia não quer levar estas ações em julgamento. Ela vem evitando pautar o Plenário com estes processos. A magistrada não quer retomar um caso analisado há menos de dois anos pela Corte. Em 2016, os onzes ministros tinham se decidido, por 6 votos a 5, que os condenados em segunda instância poderiam sim ser presos. A seu ver, a discussão sobre o assunto “estava pacificada”.
Em entrevistas, a presidente deixou claro que não seria levada pela pressão. As ADCs estão prontas para ser analisadas desde dezembro do ano passado. Contudo, não há datas para que o julgamento ocorra — mesmo com a pressão dos autores do processo, dos advogados e do ministro Marco Aurélio, que é o relator das ações. A pauta do plenário é definida por decisão do presidente do STF.
Caso as ações do PEN e da OAB sejam aprovadas, o primeiro beneficiado seria o próprio ex-presidente Lula. Ele somente seria preso após o julgamento de todos os seus recursos. A seguir, a vantagem seria estendida aos políticos e empresários investigados pela Operação Lava Jato, que têm 150 inquéritos que tramitam no STF. Atualmente, é a maior do país em termos de denunciados. Segundo o jornal El País, “as investigações envolvem quase um terço do Congresso Nacional, além de seis ministros do presidente Michel Temer (MDB)”. Os terceiros beneficiados seriam os acusados em operações semelhantes nos estados do país que apuram crimes contra a Administração Pública, como é o caso de Mato Grosso.
POR QUE O JURISTA ESCREVEU O PARECER?
Antes de iniciar a análise do direito a presunção de inocência, o jurista começou por afastar qualquer conotação política que possa haver em seu parecer. “Não sou eleitor do consulente [Lula] nem de seu partido. O consulente aqui é, por assim dizer, um instrumento pelo qual exerço um dever impostergável, qual seja: a defesa da Constituição”, apontou.
“Afirmei que tenho ‘o dever impostergável’ de defender a Constituição, e essa afirmativa decorre do fato de que trabalhei muito, me empenhei para além mesmo de minhas forças, para que ela fosse uma Constituição essencialmente voltada para a garantia da realização efetiva dos direitos humanos fundamentais, confiante em que os tribunais, especialmente o tribunal incumbido de sua guarda [o STF], soubessem interpretar a formulação normativa desses direitos, segundo a concepção de que seu entendimento há de ser sempre expansivo e nunca restritivo”, escreveu no parecer.
Ele afirmou ainda que não cobrou honorários a defesa do ex-presidente para escrever o parecer. “Se o parecer visa à defesa da Constituição, o consulente nada tem a pagar por ele (parecer pro bono). A defesa da Constituição não tem preço”, escreveu. No final, ele espera que os ministros do Supremo possam rever seu entendimento e adotar uma postura em conformidade com a Constituição.
“A grandeza de um tribunal não se perde quando, no cumprimento de sua missão constitucional, presta a sua jurisdição sem temor e sem concessão e não se sente apequenado pelo fato de rever sua posição em favor dos direitos fundamentais, a favor de quem quer que seja que lhe bata às portas. Um tribunal só se diminui e perde credibilidade quando decide contra ela, qualquer que seja a motivação”, afirmou.