Com a pandemia da Covid-19, o psicólogo e psicanalista Francisco Nogueira, de São Paulo, se tornou idealizador e coordenador da “Experiência de Escuta”, um projeto online que presta um serviço voluntário com especialistas que escutam, durante 30 minutos, aqueles que precisam desabafar, elaborar ou nomear seus sentimentos e queixas. Não é uma psicoterapia online, mas um acolhimento profissional que segue uma metodologia própria.
“A ‘Experiência de Escuta’ é uma metodologia que venho desenvolvendo há seis anos, para o meu trabalho junto as empresas. Quando surgiu a pandemia, comecei a estudar os efeitos psicológicos nas populações que estavam enfrentando o isolamento social e percebi que as consequências eram consideráveis”, explica Nogueira.
Sendo um projeto de acolhimento aos que enfrentam situações de grande estresse, como vítimas de desastres ou situações de calamidades, o atendimento online da “Experiência de Escuta” possibilita o encontro de algum alívio, podendo até mesmo funcionar como uma triagem ao separar os indivíduos que precisam de um tratamento tradicional dos que não tem urgência.
“A Experiência de Escuta é desenhada para que a maior parte dos acolhimentos dure apenas um encontro de 30 minutos, e possui uma técnica de escuta que valoriza certos elementos da fala do usuário. Uma psicoterapia tradicional transita por várias questões e contempla um espectro mais amplo da psicodinâmica do paciente, além de muitas vezes não possuir um tempo determinado para o encerramento, podendo durar muitos anos”, explica Francisco Nogueira.
O coordenador do projeto conta que já foram realizados cerca de 5.300 agendamentos no site da “Experiência de Escuta”, sendo o estado de São Paulo que lidera pela busca no atendimento.
Efeitos psicológicos da pandemia na população
De acordo com Francisco Nogueira, já é possível afirmar que o impacto psicológico da pandemia na população brasileira será de longo prazo e exigirá da sociedade como um todo, ou seja, do governo, empresas e sociedade civil, uma atenção muito cuidadosa para o tema da saúde mental.
Nogueira explica que a partir dos relatos no projeto, foi realizado um mapeamento em fases das evoluções gerais dos sofrimentos. De modo geral, foi observado sinais de depressão, ansiedade, insônia, estresse, abuso de substâncias tóxicas, preocupações e medos aumentados e irritabilidade.
“Mapeamos cinco fases durante a primeira onda, (1) surpresa; (2) angústia; (3) saturação; (4) descompressão / negação e (5) trauma / luto”.
As fases, conforme explica Francisco Nogueira:
Com as primeiras notícias sobre o coronavírus, a Fase 1 (fase da surpresa – entre fim de março e abril) dos acolhimentos foi marcada por ansiedade e surpresa. O sentimento de impotência e preocupação com o futuro e sustento da família trouxe o agravamento de quadros de transtornos mentais que já eram conhecidos ou que existiam como pano de fundo.
Depois de algumas semanas, veio a sensação de incerteza associada a profunda angústia, o que foi denominado como Fase 2, a fase da angústia. A convivência forçada com a família e o prolongamento do isolamento social intensificaram a tensão. Aparecem os primeiros relatos de violência doméstica e casos de pânico. Pessoas que nunca tinham tido contato com psicólogos ou psicanalistas começam a procurar a Experiência de Escuta, tendência que se manteve até 20 de agosto, quando passamos por um período que foi até o dia 05 de dezembro acolhendo apenas educadores e profissionais de saúde.
Com a Fase 3, a fase da saturação, a mais longa até então, que atravessa junho e julho, vem o cansaço e o agravamento dos transtornos mentais, que exigem encaminhamentos a tratamentos de longa duração. A depressão e o sentimento de raiva emergem com força e o pânico é relatado com frequência. Observamos um boom no relato de abuso de álcool e drogas, pensamentos suicidas, assim como de violência dentro de casa.
Na Fase 4 (descompressão / negação), a evolução psicológica muda de rumo. Vem a descompressão associada à esperança trazida pela flexibilização social e pelo possível desenvolvimento de uma vacina. Aos poucos, o medo provocado pelas situações forçadas de aglomeração dentro do transporte público e na convivência nos locais de trabalho é substituído pelo processo psíquico da negação. Os discursos se transformam e passam a fazer pouca referência aos perigos da Covid-19.
A Fase 5 (trauma e do luto) envolve o trabalho sobre o trauma e sobre o luto mal elaborado. Entretanto, o fato é que ainda não conhecemos os contornos finais da batalha contra a Covid-19, mas é incontestável que a saúde mental tenha entrado no radar de nossas prioridades. E é assim que ela deve ser tratada pelas empresas, pelo governo e pela sociedade como um todo.
No atual momento observamos uma sobreposição das fases 2, 3 e 5.
Preservando e lidando com a saúde mental
“A preocupação com o cuidado com a saúde mental virou pauta fundamental no mundo todo. Todos os profissionais que conheço estão com seus consultórios lotados devido ao aumento da procura. Observamos muitas pessoas buscando alívio na comida, no uso de álcool ou mesmo de drogas ilícitas”, explica.
Francisco Nogueira acrescenta que o luto é uma questão que também preocupa, pois a necessidade dos enterros feitos às pressas impede o cumprimento adequado dos rituais de despedida, o que pode ter efeitos melancólicos, causando o agravamento de sofrimentos psíquicos já existentes ou o surgimento de novos sintomas.
“É possível diminuir os prejuízos à nossa saúde mental, mas isso requer um investimento diário e ativo. Fazer terapia, cuidar da alimentação, manter-se em contato, ainda que remoto, com pessoas queridas, fazer exercícios físicos, mesmo que poucos ajuda muito. É importante lembrar que o sofrimento faz parte da vida e que o momento atual aumenta essa carga. Precisamos buscar atividades que nos façam sentir vivos”.
Conforme explica o especialista, estamos enfrentando um evento que é traumático em muitos aspectos e é necessário cuidar da saúde mental, para que a população supere seus traumas e elaborem seus lutos.
“A psicanálise mostra que o trauma ou a melancolia provocada pelo luto mal elaborado podem durar por muitos anos, em alguns casos, décadas”, aponta o psicólogo.
Francisco Nogueira defende que não se deve usar o sofrimento emocional como justificativa para o fim da quarentena ou relaxamento das medidas de prevenção contra Covid-19.
“O mais urgente é salvarmos vidas enquanto vamos cuidando da nossa saúde mental e da saúde mental da população. Este é um trabalho que vem sendo oferecido pela Experiência de Escuta desde o início da pandemia e deve continuar sendo feito hoje e no futuro, por nós e pelos dispositivos, instituições e profissionais qualificados para isso, com apoio do poder público e da sociedade”.
O profissional defende que mesmo que o isolamento social seja muito difícil e cause impactos psicológicos na população, ele precisa ser respeitado e é necessário ter consciência de que esse é um preço a se pagar para salvar vidas.
“Só haverá a possibilidade de cuidarmos da nossa saúde mental depois que a pandemia passar se ainda estivermos vivos”.
Experiência de Escuta e Relações Simplificadas
De acordo com Nogueira, no início da primeira onda da pandemia o projeto “Experiência de Escuta” tinha 60 profissionais trabalhando no acolhimento, mas com a queda da procura, no decorrer dos meses, hoje o projeto conta com cerca de 30 especialistas.
Para ser voluntário o profissional precisa ser formado em psicologia e/ou psicanálise, ter longa experiência clínica e estar atendendo atualmente. Para psicólogos é exigido seja ativo no Conselho Regional de Psicologia, cadastro no E-psi e familiaridade com a teoria psicanalítica.
Além do projeto “Experiência da Escuta”, Nogueira trabalha na “Relações Simplificadas”, há seis anos.
No YouTube existe um canal onde é disponibilizado diversos vídeos que buscam ajudar as pessoas a lidarem com este momento da COVID-19 com temas como luto, cansaço, medo, o trabalho no home-office, entre outros.