A procuradora federal dos Direitos do Cidadão Déborah Duprat se manifestou pela incompatibilidade de seu colega, Aílton Benedito de Souza, do Ministério Público Federal em Goiás, para integrar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Segundo ela, o procurador usa as redes sociais para criticar “providências que são ou devem ser tomadas na perspectiva de uma justiça de transição”. Para Benedito, a manifestação dela representa uma “tentativa de censura”. Ele ressaltou ao Conselho Superior do Ministério Público Federal que já inclusive abriu inquérito para investigar desaparecidos “em prol do Direito da Sociedade à memória e à verdade”.
A Comissão, criada 1995, tem a competência de reconhecer e localizar os corpos de desaparecidos políticos entre 1961 e 1988, no período que compreende anos que antecederam a Ditadura Militar (1965-1985) e a aprovação da Constituição.
Ativo nas redes sociais, Aílton Benedito elenca, em seu perfil do Twitter, a ordem, a liberdade, a Justiça e o conservadorismo em sua própria descrição. Na plataforma, é crítico contra quem classifica como esquerdistas�. “Segundo os esquerdistas brasileiros seguidores do presidiário Lula, sequer houve ditadura no período Vargas, tanto que a suposta Comissão Nacional da Verdade não se preocupou em saber a verdade sobre as vítimas presas, torturadas e mortas a mando do ditador”, diz, em uma de suas publicações.
No dia 11 de abril, Benedito divulgou, em suas redes, o convite assinado pelo Secretário Nacional de Proteção Global, Sérgio Augusto de Queiroz. “Agradeço publicamente à ministra @DamaresAlves o convite para integrar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP”, afirmou, referindo-se à chefe da pasta, que abriga a secretaria de Proteção Global.
No documento, o secretário diz ao procurador: “Desta forma, solicito resposta para o presente convite que, em caso positivo, será posteriormente enviada para o Presidente da República, o Excelentíssimo Sr. Jair Messias Bolsonaro, para sua apreciação e eventual confirmação”.
Logo em seguida, publicou: “Há esquerdistas que não se conformam diante da minha indicação para, em nome do MPF, integrar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP. Tomara que não seja medo de que a VERDADE apareça e os desmascare”.
As opiniões do procurador motivaram Duprat a querer barrar seu nome na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ela cita algumas das publicações que, segundo ela, o tornam incompatível com a cadeira:
“8 de abril de 2019”: “O ‘Regime Militar'” instituído em 1964 é achincalhado há décadas e transformado em espantalho por esquerdistas, que o usam para aliviar as próprias culpas pelo mal que infligem ao Brasil. Agora, não perdem ocasião de promover confusão entre aquele ‘Regime’ e o governo Bolsonaro”.
“5 de abril de 2019”: “Qualquer versão dos fatos políticos de 1964, se não coincidir exatamente com hagiografia de terroristas esquerdistas e a criminalização das FFAA, nunca satisfará a sanha mentirosa do establishment político-midiático”.
“4 de abril de 2019”: “Vai vendo. A mesma turma esquerdista homiziada na imprensa, ONGs, ONU, universidades, instituições públicas etc. trata a “Revolução de 64″ por ‘Golpe’, o ‘Regime de 64’ por ‘Ditadura’, os ‘terroristas comunistas’ por ‘democratas’, o ‘impeachment de Dilma’ por ‘Golpe'”.
“30 de março de 2019”: “Durante 40 anos, os eventos de 31 de março de 1964 foram monopolizados pelos esquerdistas, a fim de propagandear a sua inocência passada presente e futura, enquanto silenciavam, achincalhavam e culpavam as FFAA, e cobravam pedágio ideológico e financeiro da sociedade”.
“31 de março de 2019”: “O esforço ideológico esquerdista para resgatar e preservar a ‘memória e a verdade histórica’ não alcança a pior das ditaduras no Brasil: o ‘Estado Novo’, comandado pelo facistóide Getúlio vargas. A bem da verdade, esquerdistas o amam, idolatram, imitam”.
Segundo a procuradora, o convite a Benedito provocou reações em familiares de desaparecidos, e citou uma nota deles: “É inaceitável e uma afronta a nomeação de pessoa com tais atributos e postura para integrar Comissão que tem por tarefa exatamente investigar os crimes cometidos pela ditadura militar contra todos aqueles que foram classificados como opositores”.
‘Não tem intimidade’
A procuradora afirma que “em 24 de setembro de 2010, pela Portaria nº 19/2010/PFDC/MPF, instituiu grupo de trabalho denominado DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE”. “Assim também o fez a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, pela Portaria nº 21, de 25 de novembro de 2011, criando o Grupo de Trabalho Justiça de Transição”.
“Ambos os grupos de trabalho atuaram intensamente desde então, produzindo ações judiciais e extrajudiciais, além de grande acúmulo de reflexão. O Procurador Aílton Benedito de Souza jamais participou de quaisquer dos grupos, seja como membro, seja como interlocutor à procura de subsídios para eventual iniciativa”, escreve.
A procuradora ainda diz: “Além de não ter intimidade com a matéria, é bastante comum proceder contrariamente às providências da PFDC e de seu GT DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE”.
Competência
A procuradora afirma ainda ser “preciso fazer uma observação quanto à atribuição da autoridade que formula o convite”. “Nos termos do art. 5º, § 1º, da Lei 9.140/95, os 7 membros que compõem a CEMPD são ‘de livre escolha e designação do Presidente da República'”.
“Não há, nesse diploma legal, norma dispondo sobre a possibilidade de delegação do ato, e tampouco há nos autos qualquer documento que revele que o Secretário Nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem competência para a escolha do membro do MPF que irá compor a CEMPD”, escreve.
A procuradora ainda diz não se tratar, “em absoluto, de aspecto secundário”. “Há, no ato de escolha, uma dose de interferência na autonomia administrativa do Ministério Público Federal. Daí a necessidade do reforço à interpretação que o reserva ao Presidente da República.”
Recomendação
“Desse modo, a manifestação da PFDC é pela incompatibilidade do Procurador da República Aílton Benedito de Souza para integrar uma comissão cujo propósito principal é, a partir do reconhecimento da culpa do Estado brasileiro por atos cometidos por seus agentes no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, acolher os familiares dos desaparecidos políticos e empreender esforços que lhes permitam chegar aos seus corpos ou, ao menos, à verdade dos fatos”, conclui Duprat.
Defesa de Aílton Benedito
Em reação à manifestação de Duprat, o procurador da República Aílton Benedito encaminhou uma manifestação ao Conselho Superior do Ministério Público.
No documento, ele afirma que o parecer de Duprat é uma “tentativa de censura, que lamentavelmente marcou a história do Regime de 1964”. “A instituição que deveria ser a primeira a combatê-la, nesta Casa, busca utilizá-la para, sem fundamentação jurídica, impedir a designação de um membro específico do MPF para a CEMDP.”
“Diferentemente do que postula a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Déborah Duprat, reitero, a mais não poder, minha total compatibilidade com as funções da CEMDP”, anota.
Ele afirma que, em mais de 12 anos como membro do MPF, período no qual atuou como Procurador dos Direitos do Cidadão por 2 anos, e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, por outros 10, seu “exercício funcional fundamentou-se no que dispõem a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
“E não é diferente no tratamento que dispenso ao DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE, malgrado possa desagradar a PFDC e, como a própria afirma, ‘seu GT DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE'”, diz.
Benedito afirma: “Com efeito, a minha atuação na matéria em questão não está vinculada obrigatoriamente a entendimentos dos mencionados Grupos de Trabalho, para os quais, inclusive, não costumam ser designados membros do MPF que, de antemão, possam ter opiniões que se vislumbram divergentes das predefinidas”.
O procurador ainda ressalta que atuou em matéria objeto da Comissão. Inclusive, diz que instaurou, em Goiás, um inquérito para colher elementos a respeito de mortos e desaparecidos naquele Estado, no período do regime militar “a fim de alicerçar eventual atuação da Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão em prol do Direito da Sociedade à Memória e à verdade”.
“Com efeito, não pode a PFDC arvorar-se detentora de competências e prerrogativas do Conselho Superior do Ministério Público Federal nem do Procurador-Geral da República, muito menos do Congresso Nacional e do Presidente da República, e inovar a ordem jurídica, criando requisitos ideológicos e, consequentemente, ilegais para integrantes da CEMDP”, diz.
“Aqui, não posso deixar de destacar minha satisfação pessoal, ao perceber que a PFDC lê e aprecia as minhas postagens na rede social Twitter, tanto que colacionou algumas à sua impertinente manifestação”, argumenta o procurador.
Benedito ainda destaca que “os membros do MPF são fontes de informações, conhecimentos e opiniões, acerca do Brasil e do mundo, sob as mais diversas perspectivas culturais, e sua essência é a liberdade expressão”. “Pretender afastar um Procurador da República da sua atuação funcional ou obstaculizar a sua participação em instâncias externas, por razões de ideológicas, só desnuda aqueles que, à falta de argumentos bastantes para contraditar o conteúdo de mensagens que lhes desagradam, ‘atacam o mensageiro’, visando eliminá-lo dos espaços de debate público, o que tristemente vem atingindo diversos colegas da instituição.”
“Se informações são falsas, se conhecimentos são equivocados, se opiniões são reprováveis, a essência do debate público os depurará, separará o joio do trigo, independentemente das vontades individuais ou coletivas. De qualquer agente do MPF se espera que não queira transformar suas idiossincrasias em dogmas insusceptíveis de crítica interna ou externamente à instituição, encapsulando-se numa ‘imunização cognitiva’ que o proteja da verdade”, argumenta.
O procurador diz que, dentro do Ministério Público Federal, “não se pode pretender punir, ainda que dissimuladamente, membros que veiculam pontos de vista dissonantes no espaço público, a pretexto de se praticar uma ‘censura do bem’ contra o ‘herético’; fenômeno que esconde o medo de que o outro possa provocar ‘dissonância cognitiva’ nos imunizados”.
“Posto isso, contando com a sabedoria dos senhores integrantes do egrégio Conselho Superior do Ministério Público Federal, pugno pela apreciação do caso e pela rápida manifestação favorável à minha designação para integrar a CEMDP”, requer.