Foto: Andréa Lobo / Circuito MT
Imagine um dia que você fosse a um hospital e todos os médicos fossem trabalhadores terceirizados? E se levasse seu filho à escola onde, além dos trabalhadores da limpeza e segurança, também encontrasse professores, contadores e psicólogos terceirizados? Essa é a indagação que a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Amanda Fernandes Ferreira Broecker faz, durante uma entrevista sobre a questão da aprovação do Projeto de Lei nº 4.330/2004 que tramita no Senado brasileiro (e ficou mais conhecida como PL da terceirização).
A regulamentação recentemente ganhou os telejornais, os meios de comunicação, as universidades e vários representantes da sociedade passaram a analisar o tema, que se tornou polêmico e digno de embates filosóficos bem acalorados. De um lado entidades que historicamente representam o trabalhador, como MPT, Central Única dos Trabalhadores (CUT), sindicatos e organizações do trabalho.
Do outro lado órgãos representantes do empresariado, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Sesi e Sebrae. Que alegam que a PL trará o equilíbrio necessário para estimular à atividade econômica e a devida proteção e respeito aos direitos do trabalhador. Para os sindicatos a aprovação da PL significará “50 anos de retrocesso nas conquistas trabalhistas e total precarização das relações de trabalho”, segundo disse Broecker.
De onde vem essa discussão? – A polêmica começou após a aprovação do projeto de lei que tramitava no Congresso desde 2004, mas que só agora ganhou o Senado Federal (abril deste ano). Ou seja, passou pelos deputados federais contrariando a bancada governista, que defende leis mais duras para a questão. O fruto de 11 anos de negociações/embates entre vários setores da sociedade, que participaram desse longo diálogo, como empresas, trabalhadores, Câmara dos Deputados e governo, saiu da esfera ‘intelectual’ e foi para o meio cotidiano e popular.
O Projeto de Lei 4330 institucionaliza a prática da terceirização no Brasil de todas as atividades da empresa, permitindo, com isso, segundo especialistas, a existência de “empresas sem empregados”.
Precarização do trabalhador
O projeto de lei que tenta regulamentar a terceirização no processo produtivo brasileiro, para áreas além das atividades-meio (limpeza e segurança, por exemplo) para as atividades-fim, levantou sérios questionamentos quanto ao direto do trabalhador. Conforme a procuradora Amanda disse em entrevista ao Circuito Mato Grosso, quanto mais se diluir as responsabilidades entre patrão e empregado, mais o segundo tende a perder. “A terceirização vem acabar com a pessoalidade, a subordinação e a hierarquia nas empresas, já que o patrão não mais terá responsabilidades jurídicas sobre o contratado”, explicou.
Ou seja, segundo interpretação da procuradora, não se pode negar que o modelo atualmente praticado vem promovendo precarização das relações de trabalho, ao permitir o surgimento, dentro de uma mesma empresa, de dois segmentos de trabalhadores: os empregados diretos, que contam com o manto de proteção do empregador, e os “terceirizados”, que ficam à mercê das empresas contratadas; estas, nem sempre idôneas.
Enquanto o Direito do Trabalho representou avanço das relações sociais humanizando-as, por outro lado a terceirização ampla e sem critério implicou, conforme interpretação do MPT, na degradação do nível de relacionamento entre empregado e empregador, isolando os trabalhadores em suas lutas, desestruturando as categorias e enfraquecendo o movimento sindical.
“Quando uma empresa, sem qualquer especialidade, promove indistintamente a intermediação de mão de obra com finalidade apenas e tão somente de fornecer ao cliente trabalhadores dos mais diversos segmentos, a relação de trabalho resta comprometida”, comentou Amanda.
Terceirização em Cuiabá
Ainda segundo a procuradora, somente em Cuiabá, 12 dos fragrantes de desrespeitos aos direitos trabalhistas nas obras da Copa do Mundo (em 2014) 11 casos tinham trabalhadores terceirizados. “Isso é um dado alarmante e se formos ver nacionalmente preocupa ainda mais, já que 17 dos 19 maiores casos de escândalos trabalhistas em 2014 foram protagonizados por empresas terceirizadas”, apontou.
Conforme sua interpretação ao se introduzir um ‘intermediador’ entre patrão e empregado, com objetivo de maximizar lucros, quem sai prejudicado é o trabalhador. “Já que esse terceirizado trabalha em média três horas a mais, ganha cerca de 28% a menos e estará mais exposto a acidentes de trabalho, ele tem menos acesso a verbas rescisórias e direitos trabalhistas como o recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), férias e indenizações”, disse.
Outro dado apresentado pela representante do MPT é que 80% dos casos de acidentes fatais, que são denunciados, são de trabalhadores terceirizados. “Isso não é apenas uma polêmica que queremos fazer, sem razões. Existem fatos e dados importantes que estamos apresentando e mostra que essa PL pode trazer sérios riscos a legislação trabalhista”, comentou Amanda.
Ainda segundo a procuradora do Trabalho, os esforços para poder ‘barrar’ a aprovação da PL no Senado estão sendo desenvolvidos de formas preventivas e repressivas. Os debates públicos, audiências e discussões acerca do tema estão sendo intensificados. “Nós precisamos levar informações a sociedade acerca dos malefícios da terceirização sem limites. Da precarização do trabalhador, da classificação do trabalhador como algo substituível e até descartável”, comentou.
Pelo viés repressivo, o MPT combate atualmente empresas que têm pessoas terceirizadas nas atividades-fim da empresa e cometem abuso contra trabalhadores.
OUTRO LADO
Em contrapartida, a Confederação Nacional da Indústria vê com bons olhos a regulamentação da PL 4.330/2004. Segundo pesquisa encomendada pela instituição, 70% das empresas da indústria contratam serviços terceirizados. Mas 60% delas apontam a falta de segurança jurídica como principal dificuldade que enfrentam ao recorrerem à terceirização. A amostra foi feita com 2.330 empresas, sendo 865 pequenas, 895 médias e 570 grandes; o período de coleta das informações foi de 6 a 16 de janeiro de 2014.
A pesquisa apontou que a falta de regulamentação do assunto tem sido fonte de constante insegurança para empresas, que contratam e prestam serviços terceirizados, e para os trabalhadores que dependem desses empregos. A sondagem mostrou que 75,2% das indústrias que terceirizam observam, de forma espontânea, se a contratada cumpre com os encargos e obrigações trabalhistas (INSS, FGTS e outros). Não há, atualmente, obrigação legal para que as contratantes garantam essa “dupla rede de proteção” ao terceirizado, mas está prevista no PL 4.330/2004.
A sondagem constata ainda que a maioria das empresas que contrata serviços terceirizados fiscaliza, voluntariamente, se a contratada cumpre as normas de saúde e segurança do trabalho. De acordo com o estudo, 74,5% das indústrias exigem o atendimento às regras por parte dos terceirizados, para evitar a incidência de acidentes de trabalho.
A principal incerteza enfrentada por empresas que terceirizam é a jurídica, decorrente de possíveis passivos trabalhistas, assinalado por 59,9% das empresas ouvidas. Em seguida, as dificuldades que mais preocupam o setor industrial são arcar com custos maiores que o esperado (43,2%) e obter do serviço contratado qualidade menor que a esperada (42,9%).
Na avaliação da CNI, a terceirização é um fenômeno irreversível, reflexo da divisão do trabalho moderno num contexto produtivo globalizado. A indústria precisa ter condições de competir não apenas no mercado interno, mas dentro de cadeias globais de valor. A divisão de etapas produtivas para prestadores de serviços terceirizados é instrumento essencial para acesso a melhores técnicas, tecnologias e eficiência, com reflexo direto no custo do produto nacional.
Prejuízos
Segundo a pesquisa o documento, a contratação de serviços terceirizados está tão integrada à estratégia das empresas que mais da metade do setor industrial seria afetado negativamente caso se torne impossível recorrer à terceirização. A pesquisa da CNI identifica que 42% das empresas entrevistadas sofreriam com perda de competitividade se fossem impedidas de contratar terceiros. Outros 15,4% afirmam que uma ou mais linhas de produtos se tornariam inviáveis caso fossem proibidas de terceirizar. As empresas que não seriam afetadas representam 28% das ouvidas na sondagem.
Ganho de tempo
Esta é a razão mais importante para a decisão de terceirizar, assinalado como importante ou muito importante por 87,9% das empresas. Em seguida, tem-se a redução de custos, assinalado como importante ou muito importante por 85,6% pelo total da indústria (transformação, extrativa e construção). Aumento da qualidade de serviço, assinalado como importante ou muito importante para 83,6% das respondentes, tem importância também elevada, próxima das duas primeiras.
Também é muito expressiva como motivação para terceirizar o uso de novas tecnologias de produção ou gestão, que foi assinalada como importante ou muito importante por 74,1% das empresas. O ganho de tempo é um resultado especialmente importante para a indústria de construção, assinalado como importante ou muito importante por 91,9% das empresas, ante 87,2% das empresas da indústria de transformação e 80% da indústria extrativa.