Cidades

Paulo Roberto: uma mente brilhante sobre rodas

Fotos Ahmad Jarrah

Ao final de um pequeno corredor no Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, sob uma janela, está Paulo Roberto Ferreira, 36. Com ouvidos interessados e olhos curiosos, ele está atento a tudo que o rodeia. Ao seu lado, a mãe, fiel escudeira, Eva Ferreira. “Eu não consigo viver sem o Paulo, eu não consigo ficar longe dele”, diz a mãe. 

A força com que Eva empurra a cadeira de Paulo hoje é maior que a de ontem. As rodas não estão mais tão cheias: “a câmera de ar furou, e o moço pediu R$ 300 para arrumar. Assim não dá!”. De transporte público, sem discussão, retornou com o filho à faculdade. Lugar que faz parte da rotina dos dois há um mês.

Paulo Roberto nasceu em Cuiabá com uma síndrome chamada Atrofia Muscular Espinhal tipo 2. Contudo, até os 27 anos o diagnóstico era de poliomielite, popularmente conhecida como Paralisia Infantil, doença que teve na infância. Com a perda dos poucos movimentos que lhe restavam dia a dia, foi preciso uma investigação mais profunda.

Paulo nunca caminhou. Em investigações no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, chegaram ao diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal tipo 2. “Os médicos falaram: ‘Paulo, infelizmente não tem cura. Ela é lentamente progressiva’. Até três anos atrás eu conseguia me alimentar, escrever, barbear, escovar os dentes. Em parte, eu tinha uma certa autonomia motora. De uns três anos para cá, tem evoluído mais”, explica.

Após o diagnóstico, Paulo deu início aos medicamentos, e se envolveu com aparatos para melhorar a qualidade de vida. Para ter acesso ao computador, ele usa um software desenvolvido pelo Hospital. Com movimentos do rosto, o estudante consegue usufruir de qualquer programa na rede. A cadeira de rodas, também é especial. “A cadeira é toda adaptada e anatômica. Fora da cadeira eu não consigo sentar”.

Com a limitação motora, a vida escolar de Paulo foi turbulenta. Iniciou-se em uma sala de aula criada dentro do Centro de Reabilitação Dom Aquino Corrêa. “Eu fiquei nessa sala até quase 10 anos de idade. Com dois anos de vida escolar eu já sabia ler, escrever, fazer as quatro operações matemáticas”.  Após passar uma temporada com o pai em Barão de Melgaço, e retornar às atividades naquela instituição, teve o ultimato: não poderia mais estar ali. 

“Eles viram que eu tinha capacidade cognitiva, e que eu deveria estar frequentando uma escola regular. A partir de então, fui para uma escola regular. A princípio, não queriam me aceitar. A preocupação da escola regular era por conta das minhas necessidades”, conta. 

Por problemas com o deslocamento – a escola ficava a 1,5 km da sua residência – Paulo começou a ter baixa frequência na escola. Frequentava ano sim, outro não, até que, como solução, fez um provão aplicado pela Secretária de Educação e concluiu o Ensino Fundamental.

E o que fazer, quando não se tem nada para fazer? Conhecer o outro foi sua resposta. Morando em Chapada dos Guimarães, a mãe artesã, vendia os objetos na praça central da cidade. Por lá, Paulo teve contato com gente rica e pobre, de maior ou menor instrução escolar, com políticos, doutores e moradores de rua. “Nesse tempo parado, eu aproveitei para curtir a vida. Ia para praça conversar com os colegas. Ia trabalhar com minha mãe. Tomando uma cerveja…”, diz sorrindo.

Com os estudos meio de lado, em 2011, Paulo percebeu que faltava algo e decidiu voltar às salas de aula. “Quando eu voltei, no ato da matrícula, eu pensei: estou aqui por uma questão ideológica pessoal. E eu vou estudar”.

Com o apoio da mãe, mas sozinho em sala, travou uma luta com suas limitações motoras e o sistema escolar. Era necessária uma pessoa com a qual pudesse contar para auxiliá-lo em seus exercícios escolares. “Já não tinha mais domínio motor, já não escrevia mais. Passou-se um ano e nada dessa ajuda vir. Os colegas sempre davam uma força. A princípio os professores achavam que eu não conseguiria acompanhar. No segundo ano, já tive que brigar. Se eu tenho direito a uma pessoa, lutarei para tê-la”.

Em tese, quem deveria oferecer a acompanhante para Paulo era a escola, mas cansado do pouco caso, ele mesmo o fez. Uma senhora, já prestes a se aposentar o acompanhou durante todo seu segundo ano do ensino médio. No ano seguinte, não ela pôde mais e então foi substituída por um jovem acompanhante. “Acho que ele não tinha muita bagagem intelectual para discutir comigo. E foi incompatível”, brinca.

Mais uma vez, a seis meses da conclusão do ensino médio, Paulo cansa do sistema educacional do qual faz parte. Fez o Enem, e entrou com pedido de conclusão do ensino médio. 

Para um ser humano, cheio de ideologias, princípios e coragem não bastariam a conclusão do ensino médio. A mãe conta que em um dos diagnósticos de Paulo, ela recebeu a sentença: “Ele não passa de 28 anos”.

Aos 35 anos Paulo fez, pela segunda vez, o Enem e passou para psicologia. “CDF? Não! Nunca fui um cara CDF! A meu ver nerd é um cara que já é biologicamente estudioso, o cdf é um cara que faz um esforço para ser estudioso… Eu não me enquadro em nenhum desses tipos”.

Leitura é o segredo. “Eu leio, não muito, mas o suficiente. Ainda faço uma leitura de mundo. De pessoas, do ambiente. Eu aprendo muito conversando com as pessoas”. 

Se, para ingressar na universidade foi preciso leitura, para a escolha por cursar psicologia foi preciso coração. Paulo quer ajudar e entender o outro. “Eu tinha um irmão que era doente mental. Eu tive que estudar autodidaticamente para aprender a lidar com ele e a psicologia trata do que a gente tem que aprender do ser humano”. O irmão faleceu poucas semanas depois que Paulo entrou na universidade.

Mãe e filho residem em Chapada dos Guimarães. Enquanto o pedido de auxilio moradia, bolsa permanência e auxílio alimentação feito à Universidade não sai, eles estão hospedados na casa da professora do curso de psicologia, Jane Vignado.

“Assim que as aulas começaram, aluguei um quartinho no Jardim Vitória, muito ruim. Eu dormia no chão e o Paulo na cama, porque não tinha espaço para duas camas. Depois de duas semanas, a professora Jane ofereceu a casa dela para gente, e nos recebeu com muito carinho”, relata Eva. 

Acessibilidade

Olhando de fora, a Universidade Federal, como órgão público que é, deveria ser um dos locais em que o termo “acessibilidade” melhor se aplicasse. Ledo engano. Segundo a professora Jane Vignado, a universidade brasileira não está preparada para receber alunos especiais.

“Abre uma vaga e coloca a pessoa ali. Mas, como a instituição irá mantê-la dentro da universidade? O Paulo mudou todo meu trabalho pedagógico. O ritmo da aula. Hoje, faço primeiro um trabalho de apresentação para formar habilidades atitudinais, que são sempre voltadas para inclusão. Para que os alunos entendam que as diferenças são importantes. Ela [a diferença] engrandece o coletivo e reconhece quem as tem”, explica.

De acordo com Paulo, apesar das dificuldades, a Prae (Pró-reitoria de Assistência Estudantil) tem sido receptiva. Provisoriamente, a pró-reitoria está disponibilizando o transporte para buscá-lo e levá-lo para casa. 

“A meu ver, eu imaginava que ao colocar minha situação no sistema de matrícula, quando eu chegasse, já estivessem preparados. Infelizmente não estão. Mas eu vejo que, a partir deste momento, sou bastante otimista, eles têm a possibilidade e a chance de mudar de agora em diante”, alerta Paulo.

Em decorrência da síndrome, Paulo tem uma capacidade pulmonar diminuída e o falar baixo. Para que suas colaborações em aula não fossem prejudicadas, os colegas de turma de psicologia improvisaram um microfone. “É muito fácil você dar sua aula e fazer de conta que ele não existe. Outra história é colocá-lo para ser ativo nas aulas. Ele vê o filme e ele fala, contribui. Com a atitude, eu descobri que tem um monte de alunos tímidos que estão falando ao microfone”, acrescenta. 

Conquista

Em seu primeiro ano de Enem, como aluno de escola pública, ao preencher as perguntas do formulário socioeconômicas da prova, o estudante alegou ter desistido das aulas devido à falta de infraestrutura na locomoção para cadeirantes. “No ano seguinte, você acredita que mandaram três ônibus, com elevador, para cadeirantes”, conta ele.

Paulo já não usufrui mais do ônibus, destinado a estudantes de escola pública em Chapada dos Guimarães, mas, como sua síndrome é congênita, o sobrinho – também portador da síndrome, está usufruindo do ônibus adaptado.

“Então valeu a minha perseverança e essa minha luta, nossa luta, minha e de mamãe. Porque se fosse outra diria: eu não vou te levar e pronto. No entanto, ela colabora, me auxilia. Mesmo às vezes cansada e não sendo a onda dela vir para a faculdade e essas coisas”.

“Na minha condição, se fosse uma pessoa medrosa, eu já teria uma vida hospitalar doméstica. Não saía mais de casa para nada. No entanto, eu não vejo limites assim. Eu tenho uma vida normal, como qualquer um”, finaliza Paulo.

Cintia Borges

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