Meu pai era um livre-pensador. Livre de pensamentos. Livre de receios. Livre de preconceitos. E como professor, ensinava a pensar. Sócrates, Platão, Machado de Assis, Glauber, Violeta Parra eram os assuntos que permeavam nossas reuniões juvenis, promovidas sob sua tutela, na cozinha da nossa casa. Era um entra e sai permanente. Meus amigos nem batiam mais na porta.
– Aqui nesta casa não trancamos portas. E, sobretudo, não trancamos pensamentos.
Este era meu pai. Livre. Mas num mundo de liberdade, tínhamos uma obrigação: o café da manhã. Era a única hora que todos os três ficavam à mesa. Todo dia era a mesma coisa. Eu acordava, vestia o uniforme, meu pai colocava Chico Buarque na vitrola, tomava seu banho enquanto minha mãe pegava o pão na porta e fazia o café. Depois todos sentávamos à mesa e falávamos sobre coisas corriqueiras do dia.
Naquela manhã, não.
Meu pai não colocou música nenhuma. Ligou o rádio e foi tomar banho. Falavam algo sobre “Não vamos deixar transformar o Brasil em Cuba”. Minha mãe ficava olhando o café sendo coado, visivelmente nervosa. O cheiro do café sempre me faz voltar àquele momento, naquele instante, funcionando como uma verdadeira máquina do tempo. Incrível como o cheiro tem esse poder.
Din don!
Há muito tempo não ouvíamos o barulho da campainha. Acho que nem lembrava que tínhamos campainha. Automaticamente, escuto a água do chuveiro parar de cair. Minha mãe vai em direção da porta me olhando apreensiva. A porta se abre de uma vez.
– Aqui é a casa do Professor Edvino!!!!!!????????????
Eram dois homens maiores que a porta, de uniforme preto, cada um com um revólver em punho. Nem deu tempo de minha mãe pensar. Um dos sujeitos chuta a porta com violência enquanto o outro dá um direto de direita digno de uma luta de boxe no nariz da minha mãe.
– Sua puta, defendendo reacionário comunista!!!!!!
Nocaute duplo. Meu pai aparece na cozinha apenas enrolado numa toalha. Este era meu pai. Livre. Não lembro de ele gritar. Ou ao menos reclamar. Nem me olhou nos olhos. Nem se despediu. Nem olhou pra minha mãe desmaiada no chão. Desde aquele 19 de março de 1968 nunca mais vimos meu pai.
– Vovôôô! O café tá pronto. Acabei de passar. – Maria interrompe meus pensamentos. Ela cantarola uma música que toca no seu telefone, algo como “Eu vejo o futuro repetir o passado. Suas ideias não correspondem aos fatos”. Olho pra ela de cima a baixo com muito desdém.
– Sai daqui, guria! Sai daqui!
Minha amada neta coloca a xícara no meu colo, sai chorando em direção à porta. Ela até tenta ser uma boa menina, mas não passa de uma idiota. Quem usa uma camiseta escrito “Intervenção Militar Já” não sabe nada da vida.