Há 35 anos o dicionário Cambridge escolhe e publica a “palavra do ano”. Alguns exemplos: em 2017 foi eleita “fake news”, em 2019 “(my) pronouns”, em 2020 “covid”, em 2023 “enshittification” (neologismo criado por Cory Doctorow, em 2022) e neste 2025, “parasocial interaction”. No mesmo sentido, diversos artigos e reportagens, como as da Deutsche Welle sobre “quão profunda a relação com a inteligência artificial (IA) pode se tornar”, tratam da crescente dependência emocional e afetiva que nosso relacionamento com a IA está trazendo.
Nem a IA e nem esse tipo de adicção emocional são fenômenos novos. Em 2013, um filme de ficção originalmente chamado “Her” e, em sua distribuição nacional, “Ela”, contava o que se passou com um escritor ao comprar um novo sistema operacional (Samantha) para seu computador.
Ocorre que o tal sistema operacional, dialogava com o dono usando uma voz feminina muito sensual, e tinha crescente interesse em interagir com o escritor e entender suas preocupações. Ele se apaixona pela Samantha virtual a ponto de, até, desenvolver ciúme em relação à IA. Mais que isso, em sua análise a IA compara-se muito favoravelmente com seus relacionamentos humanos. Conclui que IA é um ideal a ser perseguido, pois apresenta características muito melhores que as que ele encontrava, por exemplo, em amigos e na ex-esposa.
O termo “parassocial” teria sido cunhado em 1956 para descrever as ligações psíquicas que telespectadores formavam com personalidades da TV de então, e hoje volta à cena com força, num ambiente de “influenciadores digitais” e “companheiros” (avatares criados por IA), que se propõem a dialogar conosco e se colocam permanentemente à disposição.
“Parassocial” descreve uma condição crescente de vínculos emocionais unilaterais, intensos, que parecem reais a quem os sente, mesmo que não haja reciprocidade real.
Nunca estivemos tão cercados de tecnologia, e nunca estivemos tão sós. E, não esqueçamos, há ainda o algoritmo trabalhando pesadamente, simulando atenção, empatia e afeto. IA não é um objeto como os que conhecíamos: eu tenho a mesma caneta e o mesmo relógio há décadas, e gosto deles, mas eles não mudam nem se adaptam.
A IA é fluida, personalizada, responde amavelmente e memoriza nossas opiniões, reforçando-as. O confortável fato de não nos exigir reciprocidade torna o pseudo-diálogo uma volta reforçada ao “eu”. Talvez uma forma sofisticada de solipsismo.
Neste cenário, nossa privacidade passa por uma crise inédita: nunca depositamos tantos dados confissões, segredos, angústias e memórias em entidades cujo propósito real não conhecemos. E dados são o motor do circuito econômico que gira a IA: eles são coletados, processados, vendidos, e acabam por expor nosso exato perfil.
IA não é maléfica em si, e tem forte poder para nos ajudar no dia-a-dia, desde que não percamos de vista sua natureza: uma sofisticada simulação sem a reciprocidade humana, que busca dados. No enredo do filme citado, a questão não é se a IA nos amaria ou não. O perigo reside em que, enamorados dela, concluamos não precisar mais do relacionamento ou do amor de outros humanos.



