O pulmão necrosado pela evolução da pneumonia ameaçava a sobrevivência do garoto.
Na época, a medicina dava como única alternativa o transplante. O problema era a espera pelo doador compatível. A experiência do cirurgião gaúcho José Camargo, médico do garoto, indicava que ele não apareceria em tempo.
Na contagem regressiva aflitiva, a família, moradora de Curitiba (Paraná), aceitou ser a primeira da América Latina submetida a uma técnica que utiliza a doação de parte de pulmões de pacientes vivos e não de doadores cadáveres, como é habitual. A Santa Casa de Porto Alegre, onde o médico Camargo atua, estava pronta para inaugurar a experiência.
Hoje, 14 anos depois do feito, um pulmão formado por parte doada pelo pai, Amadeu, e outra cedida pela mãe, Márcia, inspira e expira dentro do peito de Henrique, 26 anos. Todos, hoje, não apresentam nenhuma sequela do procedimento.
De lá para cá, o cirurgião José Camargo outras realizou 30 operações semelhantes em pacientes agraciados por doações vindas principalmente de pais e irmãos. O hospital gaúcho permanece como o único do continente que realiza este tipo de transplante pulmonar.
“Depois da experiência pioneira com a família Busnardo, esse tipo de transplante se popularizou”, afirma José Camargo.
“Quando transplantamos o Henrique, em 1999, foi a primeira vez que a operação foi feita fora dos EUA. Atualmente este transplante tem sido realizado em outros países com mais frequência, especialmente no Japão, onde há dificuldades com o conceito de morte encefálica (situação em que o cérebro para de responder, mas os outros órgãos continuam funcionando, condição exclusiva para a utilização de doadores cadáveres em transplantes)”, completa o especialista.
“A Santa Casa de Porto Alegre é o único serviço que já fez este tipo de transplante no hemisfério Sul.”
As dificuldades
Transplantes de pulmão são raros. Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), no ano passado, foram realizadas 69 cirurgias no País, sendo apenas uma de doador vivo. Para comparar, os transplantes renais – os rins também podem ser extraídos em vida – somaram 5.385 operações (78 vezes mais), sendo 1.488 casos intervivos.
Em geral, a fila de espera por um pulmão é formada por adultos que passaram por um câncer ou doença crônica que incapacitou a respiração. Porém, também podem entrar para estes números crianças e adolescentes acometidos por duas doenças principalmente: a fibrose cística (uma doença genética e sem cura) e a e bronquiolite obliterante (uma complicação de pneumonia viral na infância). Sem dividir por faixa-etária, o Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde, informa que atualmente são 163 pessoas aguardando um pulmão.
Henrique, na época com 12 anos, precisou de um pulmão novo por causa da pneumonia mal curada que contraiu aos nove. O que agravava o caso dele – e de todos os pacientes com menos de 18 anos – é que no transplante pulmonar é fundamental que o volume do pulmão de doador e receptor seja compatível, coincidência nem sempre imposta a outros órgãos.
“O transplante intervivos abriu a porta para os pacientes pediátricos e adolescentes que não conseguiam ser transplantados porque é infrequente a morte encefálica nesta faixa etária”, avalia José Camargo.
“É um consolo para as crianças que aguardavam inutilmente em listas de espera por um transplante com doador cadáver pediátrico saber que existe esta possibilidade desde que existam dois doadores dispostos a doar.”
Ao saber disso, Amadeu e Márcia imediatamente se ofereceram para salvar a vida de Henrique, o caçula dos três filhos do casal. Cada um ofereceu uma parte de seus pulmões.
As soluções
Nesse tipo de transplante são necessários dois doadores porque retirar um pulmão inteiro (como ocorre com o rim) reduziria a expectativa de vida de quem doasse.
“Já a doação de um lobo pulmonar significa uma perda média de 16% da capacidade prévia do doador. Esta perda em uma pessoa normal – e se não fosse normal não seria doador – é imperceptível”, explica José Camargo.
“Não tínhamos alternativa: ou era isso ou perderíamos o nosso filho”, lembra Amadeu. Até chegar ao serviço de Porto Alegre, ele procurou soluções com médicos de todos os lugares do País e do Exterior.
“Vivíamos um período de muito sofrimento. Nosso filho estava perdendo para a doença. Para ele dormir tínhamos que segurá-lo sentado, pois deitar poderia sufocá-lo”, conta o pai.
A decisão dos pais colocava fim a uma rotina limitante vivenciada por dois anos. Henrique, por causa da doença, quase não conseguia sair da cama, precisava de respiração artificial e teve de parar de jogar a pelada com os amigos, sua maior paixão de época.
“Era pequeno mas lembro muito bem. Era tão triste ver os outros meninos correndo, brincando e o tempo passando para mim. O transplante foi mais do que uma luz no fim do túnel”, lembra Henrique.
“Sei que respiro hoje porque há uma parte do meu pai e da minha mãe dentro de mim. É uma gratidão imensa que eu lembro sempre que respiro”, diz o jovem.
“A luta dele serviu para ajudar as outras 29 crianças transplantadas depois dele. Virou nossa missão”, completa Márcia.
Com pulmão novo – que cresceu por causa dos hormônios infantis e hoje tem tamanho normal ao de qualquer adulto – Henrique recuperou o fôlego que hoje, diz ele, dá e sobra para as aulas na faculdade de Direito, para fazer academia, jogar futebol três vezes por semana e torcer para o Cortiba, time do coração.
Fonte: IG