"A própria igreja tinha grupos, por exemplo, como a Juventude Estudantil Católica. Era um grupo muito aberto. Quem liderava era o Monsenhor Juvenal, muito famoso na época. Na parte secundária o diretor era eu. A gente se reunia para debater não apenas temas religiosos, mas de um modo quase especial, problemas de ordem política. Naturalmente, nós éramos super vigiados. Na minha frente, eles abriam um calhamaço e me perguntaram meu nome, minha filiação e me fizeram 12 acusações. Só depois consegui saber como eles tinham aquilo, pois eles tinham 12 pregações minhas gravadas", revelou.
Padre Prata diz que não têm fotos, muito menos vídeos da época. Aos 91 anos, tudo ainda está registrado na memória. Principalmente as dez horas passadas na prisão, depois de ter sido vítima de um inquérito policial militar e ainda ser submetido ao que ele chama de "tortura psicológica".
"Eles me colocaram a mão. Puseram-me sentado em um tamborete, eu não tinha lugar para me encostar. Eles estavam fumando na minha frente, seis ou sete tenentes coronéis. Eles fizeram duas horas de perguntas e depois retomavam e mais duas horas de perguntas. No fim vai criando uma pressão psicológica e uma confusão na mente, que você não se lembra de como respondeu a primeira pergunta deles", contou.
Para o padre Prata, a ditadura deixou marcas e foi inevitável. Se não na pele, ao menos na alma. "Cicatrizes que, às vezes, doem. Mas que, nem por isso, precisam ser suportadas com mágoa. Em uma certa noite eu fui chamado para atender uma doente, que estava muito mal. Fui ao hospital e atendi a senhora, pediu para nos deixar a sós, conversei com ele. Depois o grupo voltou. Como ela estava muito bem tratada, tive a impressão que era apenas um estado de nervo dela. Só sei que depois daquilo ela se libertou. Vários dias depois eu recebo a visita de um senhor e ele se deu logo a conhecer como Guilhermino Ferreira, chefe do SNI de Uberaba. Aí nesse momento eu assustei. Tive medo e pensei: 'é agora'. Ele veio e me falou: 'Senhor padre, aquela senhora que o senhor atendeu é minha esposa. Mas o modo do senhor falar, a tranquilidade do senhor e a fé me mostrou que o senhor não é comunista coisa nenhuma. O senhor era acusado de comunista, mas não era. Eu fiz de tudo para pegá-lo, eu jurei que botaria o senhor na cadeia, mas o que vi da sua pessoa me fez aqui me pedir perdão'. Nessa hora quase chorei de emoção. Nos abraçamos e pedi para ele esquecer e nos tornamos amigos", revelou.
O advogado Guido Bilharinho lembra com detalhes de quando também foi interrogado em 64. Ele respondeu a dois processos. O medo não existe mais, mas a indignação não passou com o tempo. "Sofri dois anos de pena, um da Polícia Militar e um do Exército. Do Exército veio o coronel comandante e toda a equipe de Ipameri, Goiás. Eles ocuparam salas do Correio telégrafo e foram chamando. Eu, por exemplo, na época não sabia e depois vi no processo, mas fui denunciado pela Associação Rural. A presidência recebia queixas de fazendeiros, porque nosso escritório tocava demanda contra fazendeiros, e eles não aceitavam isso. A mentalidade ainda não estava legalista, acostumada com lei trabalhista, que existia uma lei trabalhista no país, que dava direitos substantivos aos empregados", contou.
A insatisfação de tantos quem eram contra o regime acabou se transformando em versos e notas musicais. O produtor cultural Tonico Carvalho lembra bem do período. "Quando teve o show do Chico Buarque aqui, com Maria Creuza e Vinícius de Morais, duas músicas do Chico foram censuradas. A ‘Você não gosta de mim’, barrada pelo AI-5. Então tinha que levar todas as letras das músicas", disse.
Mesmo assim, ele contou que tinha quem se arriscasse e desafiasse o poder militar. "Já tive um problema com o Renato Russo, com a banda que não era o Legião Urbana ainda, era o Aborto Elétrico. O Renato começou a falar mal do general e prenderam ele", disse.
Aos 77 anos, Calixto Rosa Neto, filho da comunista Lucília Rosa, símbolo do feminismo em Uberaba, lembra quando teve o mandato de vereador pelo PSD em Campo Florido cassado pelo Golpe Militar e ainda acabou preso. Para quem cresceu com as convicções da mãe, ideais que defendeu durante anos de militância política, o golpe militar parecer ter aberto uma ferida ainda mais profunda. "Foi uma atraso. Tive muitos companheiros mortos. Era para fazer uma limpeza ética. Havia o interesse em destruir qualquer manifestação democrática nesse país", contou.
G1