Meu zap abriu o amanhecer de Outubro com uma mensagem assombrosa enviada por Danton Ribeiro, meu irmão. Em Um bom candidato, crônica publicada no jornal O Globo, de Cacá Diegues, cineasta brasileiro e um dos fundadores do Cinema Novo, escreveu: foi num desses fenômenos arbitrários de opinião que anônimos fizeram recentemente uma celebração inquisitorial, queimando livros de Paulo Coelho. Uma celebração tão ignorante que o ‘sacerdote’ do ritual maldizia Paulo Coelho como autor, enquanto queimava ‘O Alquimista’. […] como se pode curtir, admitir ou participar de uma missa negra como essa, uma celebração da burrice e da ignorância, adesão explícita ao autoritarismo cultural. Uma violência cultural aos costumes de um país que se deseja democrático.”
Após a leitura do zap, em conversa telefônica, a queima de livros de autoria de Paulo Coelho nos conduziu a uma analogia ao Holocausto. Estávamos com nossas memórias frescas, pois há poucos meses havíamos terminado a leitura de Os homens que salvavam livros: a luta para proteger os tesouros judeus nas mãos dos nazistas, de David Fishman. Também, eu e Rosemar Coenga acabáramos de participar do I Congresso Internacional de Literatura para crianças e jovens (PUC-SP) com o estudo Holocausto em Maus: tema e universo fraturantes em HQs, com base no livro Maus, de Art Spiegelman, que narra a história de seu pai, um sobrevivente polonês do campo de Auschwitz.
A leitura do livro de Fishman possibilitou-nos dilatar conhecimentos sobre a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha hitleriana exterminou cerca de seis milhões de pessoas (judeu, ciganos, homossexuais, políticos opositores, dentre outros).
Livros queimados – como se não bastassem as queimadas no Pantanal, com aumento registrado em 210% pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – chegaram no momento em que a Constituição Federal de 1988 completa 32 anos. Apelidada de Constituição Cidadã por ser escrita durante o processo de redemocratização do Brasil, após os tempos sombrios da ditadura civil-militar, encontra-se em isolamento social. Em seus 32 anos, a Constituição não pode ter destino similar ao da 1ª Constituição da República dos Estados Unidos (1891), quando instituiu o regime republicano presidencialista e separou o Estado da Igreja. Faz bem lembrarmos da sentença do militar Floriano: Amigo, quando a situação e as instituições correm perigo, o meu dever é guardar a Constituição em uma gaveta, livrá-la da rebeldia, e no dia seguinte entrega-la ao povo, limpa, imaculada.
Precisamos colocar a Constituição Cidadã sobre a mesa. Fazer valer os preceitos da lei magna brasileira. Não há dúvidas de que o Brasil precisa de livros, bibliotecas e leitores, como afirmou a Academia Brasileira de Letras em nota de repúdio aos vídeos que circularam nas redes sociais sobre a queima de livros de Paulo Coelho. Cabe ao país proporcionar ao seu povo o acesso democrático ao livro e à leitura. Nos tempos atuais, ler sobre o Holocausto e entender o significado da queima de livros faz-se necessário. O que assistimos nas imagens de livros incinerados deve ser contextualizado ao momento político do país, entendido hodiernamente.
Na percepção do indigenista José Eduardo, com base na análise de Wilson Roberto Vieira Ferreira, percebe-se que a queima de livros e o debate entre Biden x Trump fazem parte do mesmo fluxo autocrático, estimulado pelo caos semiótico como forma de atentar contra o processo civilizatório. Ambos os fatos atendem a uma estratégia que estimula uma desconstrução pós-moderna da verdade constituída (negacionismo) por práticas performáticas, por jogos mentais e de metalinguística como métodos para impor valores antidemocráticos e o obscurantismo intelectual.