Opinião

O Saci e o Jacutinga (II)

Há um ano, em uma dupla homenagem ao centenário do Sacy-Perêrê (1921), de Monteiro Lobato, e a quadringentésima crônica da então coluna Terra Brasilis deste jornal, a ave-personagem homônimo da série Jacutinga: histórias de um indigenista deu as caras, após um sumiço que talhou saudades em muitos leitores. Desta vez, a ave faz pouso ao se deparar em reminiscências da meninice, das traquinagens em Cristina – topônimo em homenagem à imperatriz Tereza Cristina, esposa de Dom Pedro II.

 Costumeiramente, nessa cidadezinha encravada no sertão da Pedra Branca, no sítio Santo Antônio da Bela Vista (nome herdado de três gerações e que anos mais tarde André batizaria seu sítio, em Teresópolis), os irmãos André, Jacutinga, Márcia e Nilzinha passavam as férias escolares na companhia dos avós maternos José Idelfonso e Almerinda. Nessa paisagem bucólica, voltada à vida e aos costumes do campo, nascia seu interesse pelo o Saci, figura enigmática que rondava a região, envolta em uma mistura de sentimentos de admiração, estranheza e assombro.

Nas noites frias do sítio Santo Antônio da Bela Vista, as crianças ouviam com olhos arregalados os causos de Cristina. Na sala, reuniam-se todos, quando esquentavam os pés próximos ao borralho do fogão à lenha, disposto em forma de bolo, a mesma que vovó Almerinda assava broa de fubá no fogão de barro bem redondinho.

Pela obstinação de Jacutinga, predominavam as malvadezas do Saci. Precisava da consultoria dos avós que intercalavam as ocorrências das molecagens negrinho de uma perna só, enquanto Jacutinga lembrava do livro Pedrinho e o Saci, uma espécie de manual que dava lições de como pegar Saci.

Fonte: Armazém do Folclore, de Ricardo Azevedo.

 

A antiga casa, sua ambientação à luz de lamparina e o ruído misterioso vindo do assoalho de tábuas de madeira deixavam Jacutinga quase a enxergar o Saci-Pererê. Pelas histórias ouvidas, Jacutinga, inquieto, atrasava o sono. Queria entender como seus avós, especialistas em Saci, nunca conseguiam prendê-lo em uma garrafa. Eles tinham os apetrechos necessários, sabiam manuseá-los: garrafa com rolha com cruz e peneira com uma cruz bem no meio, pintada com o borralho do fogão ou tabatinga, esta também usada pelo vovô Idelfonso para pintar as paredes da casa, deixando-a bem branquinha.

Sol levantando… Jacutinga cutucou o irmão André para ir ao bambuzal, em desobediência às recomendações dos avós. Aprenderam na noite anterior que no bambuzal está a tabatinga, mas também é lugar de cobra, mula-sem-cabeça e lobisomem. Lugar de Saci, que fica à espreita de gente abelhuda. Pé ante pé, evitando as vozes das tábuas do assoalho que denunciariam a fuga à avó, já acordada, diante ao fogão à lenha.

Para o desespero dos irmãos, ainda em reconhecimento do local, começou a ventar. Ventava forte. Folhas secas se levantavam do chão, até um redemoinho se formar. Medo e curiosidade misturavam-se nas crianças. Nesse momento, eles sentiram a presença do Saci. “Agora a gente pega ele”, vociferou Jacutinga que, com a peneira nas mãos, se jogou com André para dentro do rodamoinho, com o propósito de aprisionarem o Saci dentro da garrafa. Garrafa vedada com rolha em cruz. Saci capturado. Às carreiras, levaram a garrafa para descansar na oficina de carpintaria do vô Idelfonso, um exímio carapina.

Sentados, olhavam os meninos para a garrafa arrolhada. Esperariam o tempo que fosse por uma reação do Saci. Adormeceram. Até que foram acordados pelos gritos de vovó Almerinda que os chamava para almoçar. E a garrafa?

Estavam famintos.

 

Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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