Opinião

O roubo das cores dos sonhos

Experiências oníricas? Permissão para qualquer pessoa usar sua capacidade criativa. Mas, quais são os significados dos sonhos? Lembro-me que nos anos em que vivi na aldeia com grupos da etnia Nambiquara, eu e Edu adquirimos ao acordar o hábito de contar nossos sonhos. Em 1985, chegamos a comprar um livro e aventurar interpretações. Dicionário dos Sonhos, livro de autoria de Lady Stearn Robison e Tom Corbett, do Círculo do Livro, nos acompanha até hoje. A primeira capa solta e as páginas manchadas e amareladas proclamam o passar dos anos… Depois veio Livro dos Sonhos, de Jorge Luis Borges, também do Círculo do Livro, com histórias de diversas partes do planeta, incluso Mato Grosso, com o povo indígena Bororo que acredita que “um sonho é uma realidade espiritual capaz de levar ao entendimento de que faz parte do mundo real e não um epifenômeno cerebral, como sonha o materialismo em sua versão mais estrita.”

Na longa linha da História são tantos os que se debruçaram e se debruçam para entender as mensagens e influências dos sonhos na vida cotidiana. Povos indígenas, por exemplo, atribuem enorme papel aos sonhos. Indígenas da América do Norte possuem o filtro dos sonhos para purificar energias e separar sonhos bons dos ruins e possibilitar o entendimento de imbricadas mensagens oníricas.

Filtro dos Sonhos

Fonte: Bem Colar

Na crença do povo Xavante, “a vida é feita da mesma matéria dos sonhos”. Por isso suas decisões se fundamentam nos mesmos: “é o sonho que direciona nossa vida, dá o rumo, a orientação. É no sonho que chegam os ensinamentos, as mensagens e os cantos, transmitidos pelos ancestrais.” Cordões vegetais enrolados nos pulsos e tornozelos são usados também para ajudar a sonhar; banhos de ervas ajudam a ter bons sonhos.

O líder indígena Ailton Krenak explica que os “sonhos não carecem de ser decifrados, não precisam passar por leituras que a razão da modernidade precisou de tanta ciência para estruturar.” Para Krenak, os indígenas conversam com “sua tradição por meio dos sonhos e que sonham com o futuro dos seus netos. O sonho é o instante em que nós estamos conversando e ouvindo os nossos motivos, os nossos sábios, que não transitam aqui nesta realidade. É um instante de conhecimento que não coexiste com este tempo aqui.”

Tudo indica que a vivência com os povos indígenas me levou a valorar os sonhos, entendendo-os como revelações, presságios. São “manifestações dos desejos e ansiedades mais profundos, muitas vezes relacionados a memórias ou obsessões reprimidas na infância” (visão freudiana). Ou, mais ainda, como “liberação de energia pelo inconsciente, trazendo para o consciente o que falta neste” (visão junguiana). Para o psiquiatra suíço, sonhos são janelas da alma.

Falo de sonhos porque recentemente, em tratamento com florais de Bach, o colorido de meus sonhos desapareceu. Escondeu-se. Tornou-se monocromático. Preto, branco e cinza colorem personagens, objetos e cenários oníricos. Manifestam-se nas vozes. O sumiço do colorido acompanha o esquecimento do sonhado. Silencia meu caderno de sonhos, ferramenta sagrada do autoconhecimento. Sumiço ou roubo?

Figura branca, de Van Gogh.

Fonte: Thomas Brezina, 2006.

O sumiço das múltiplas cores de meus sonhos me levaram a Van Gogh. Em um momento de sua vida, o gênio holandês da pintura se deparou com uma “figura branca” que roubava suas tintas. Em cartas escritas a Theo, o artista fez referência à “figura branca”, um sabotador fantasma que foi acabou vencido pela matiz da cor marrom dos comedores de batatas, da cor amarela dos girassóis, da cor azul das noites estreladas. Com seus pincéis em descanso, até a total recuperação das cores roubadas pelo fantasma, Van Gogh passou a desenhar a lápis.

“Theo! O ladrão das tintas apareceu! Mas desta vez eu o espantei e, imagine, consegui pegar das mãos dele um pacote com as tintas que ele havia me roubado há algum tempo. Agora, junto com as tintas que recuperei, estou escondendo todos aqueles tubos de tinta que você me enviou ontem. Eu sei quanto custam para você essas tintas. Caso o ladrão retorne, não encontrará mais nada. Por outro lado, em todos os lugares brilham as cores que eu tanto quero registrar. Seu irmão, Vincent.”

Sumiço ou roubo, aguardo pelo retorno da multiplicidade de cores em meus sonhos. Talvez a não interrupção da troca de sonhos em nossos cafés matinais traga de volta as cores soniais. E, quem sabe, a resolução do enigma esteja em Ailton Krenak ao acreditar que sonhos não são decifráveis e sim recebidos.

Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora, filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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