Nicolau Sevcenko (1952-2014), historiador, escritor, tradutor, colunista da Folha de S. Paulo e professor em universidades brasileiras e estrangeiras, nasceu em São Vicente, São Paulo. Seus pais, imigrantes russos, chegaram ao Brasil para escapar da Guerra Civil Russa, conflito armado que envolveu do Exército Vermelho do governo bolchevique liderado por Leon Trotsky contra seus diversos opositores favoráveis à monarquia.
Sevcenko dedicou-se ao estudo da História, com ênfase nas temáticas da cultura brasileira, tecnologia, literatura, vida privada, urbanização e arte. Em entrevista à Outras Mídias, publicada em 15.08.2014, relacionou sua obra – Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983), revolta da vacina (1983); Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992) e A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa (2001), dentre outras – “à sua condição de imigrante, à resistência cultural dos excluídos, a sua origem, periférica e incerta”.
“O fato de sempre me sentir fora de centro e em minoria, ver o mundo de baixo pra cima em várias etapas, de diferentes perspectivas. Me deixou uma pessoa muito mais aberta, muito mais tolerante, muito mais versátil, muito mais adaptativa, e que não tinha propensão a aceitar o centro como centro, nem aceitar o eixo como eixo, eu estava mais inclinado para entender que o mundo tem diferentes centros e diferentes modalidades de definição cultural.”
Na Folha de S. Paulo, em uma de suas centenas de crônicas, Sevcenko publicou Dragões, borboletas e Brasis, reflexão que fez considerações acerca de dois livros, ambos publicados em 1994: O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX, de Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci, e Saudades do Brasil, de Claude Lévi-Strauss. Em sua análise, tratam de temáticas como “opressão, violência e desintegração sociocultural […] na qual se pode avaliar o estilo peculiar de relação que a condição colonial estabeleceu, entre o conquistador e a natureza.” Selecionou em sua crônica, duas imagens, uma de cada livro: no primeiro, uma linda menina negra vestida de anjo para um festejo religioso: túnica branca, diadema com uma estrela na testa e longas asas emplumadas; no segundo, a imagem de um sorridente adolescente da etnia Nambiquara, “na sóbria elegância da pena que lhe atravessa o septo nasal, brincos de madrepérola e o labrete de vareta de bambu que lhe sobe acima da cabeça, como um chifre longo e fino. Tal como um sublime unicórnio em seu jardim.”
Asas-chifre: objetos de poder. Linda menina negra-anjo; adolescente Nambiquara-unicórnio. As relações se acham interligadas: ser espiritual-animal fabuloso. Asas-labrete de bambu. Eles podem voar: a menina de asas e o menino de labrete e narigueira. Asas e labrete de bambu associado à narigueira emplumada pelo céu nosso de cada dia, em resistência à opressão e à violência do colonialismo.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, historiadora, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.