Os homens e mulheres de fé têm certeza de sua origem. Dizem que foram esculpidos em forma única e capricho especial pelo Senhor de todas as coisas. Acreditam que são obras exclusivas, vigiadas e cuidadas pelo Criador maior, enquanto cumprem missão importante aqui nesta terra.
Ao fim dela (da missão) serão recebidos nos céus com pompa e honrarias inigualáveis: orquestras de Anjos, Arcanjos e Querubins tocando cítaras, harpas e clarins de ouro puro em concertos inimagináveis coroarão a majestosa entrada do fiel à cidade eterna. Daqui pra frente os séculos e milênios serão consumidos lentamente, no incessante louvor, repetido e contínuo.
Eu, homem sem fé, fruto da concupiscência da carne, obra aleatória da agressividade da testosterona, produto da incontinência dos apetites sexuais, não tenho missões nem terei recompensas.
Só nasci por que um grilo faceiro numa noite de verão, cantando alegremente, de repente interrompeu por segundos o ato que a natureza usa para a perpetuação da espécie.
“Que barulho é esse?”
“É só um grilo, meu bem”
“Eu tô com medo”
“Bobagem, deixa pra lá” –
Pronto, nesse mínimo tempo de conversa, o grid de largada dos espertos espermatozoides se altera. Na movimentação frenética destes ainda não-seres o que estava na frente perde a pole e as chances de sucesso mudam. Para uma corrida tão curta quem sai na frente leva uma enorme vantagem.
Em vez do grilo poderia ser uma rãzinha, ia dizer uma perereca, mas neste contexto poderia ter uma interpretação diferente, uma rãzinha que pulou e assustou a parceira:
“Que susto”
“É só uma rãzinha”
“Pega ela, bem”
“Depois eu pego”
“Agora! senão…..”
“Tá baãooo…..”
De novo tudo alterado. Já é outra pessoa que nasce, por culpa da perere, digo, rãzinha. Outra sim, por que só houve uma única chance no imensurável universo e na eternidade dos séculos, que determinou o meu ou o seu nascimento. Aparecesse outro grilo ou mais uma perereca ou não surgisse nenhum, outro espermatozóide fecundaria um óvulo diferente e seria outra pessoa a nascer.
Outras pererecas e outros grilos símbolos da aleatoriedade das coisas continuaram a me perseguir e o farão até o dia final da vida.
A partir deste instante, você que já tem o seu próprio grilo e a sua própria perereca, passa a ser, também, vítima do meu grilo. E não adianta parar a leitura neste momento para se livrar dele. Nunca mais poderá fazê-lo.
Os minutos gastos na leitura destas linhas alterarão toda sua vida ainda que minimamente. O seu próximo lance está totalmente comprometido. Um segundo que você adiante ou atrase influirá no encontro que terá, ou não terá, com outra pessoa na garagem de seu prédio, no cafezinho do escritório, na fila do supermercado.
Daí pode nascer um casamento, um emprego. Ou perder o seu casamento ou o seu emprego. Coisas podem acontecer e mesmo que nada aconteça, já aconteceu. Tudo por culpa de um descendente daquele mesmo grilo que me trouxe ao mundo.
Vou dar-lhe uma chance de vingança. Envie seu grilo para alguém. Basta um e-mail, um bilhete, um telefonema. A partir desse momento a vida do destinatário não será a mesma. E a culpa será do seu grilo.
Renato de Paiva Pereira – empresário e escritor
Adaptado do meu livro “O Diabo vai ao céu”