Sem ele a delegacia não funciona. Engana-se quem pensa que estamos falando do delegado ou do investigador de Polícia Judiciária Civil. O escrivão é o profissional que tem o maior volume de atribuições dentro de uma delegacia e, em certas ocasiões, ainda é requisitado para cumprir as obrigações de outros, inclusive a do delegado, como geralmente acontece no interior do estado.
Ele é responsável pelos procedimentos burocráticos e documentos fundamentais ao registro do trabalho policial. De acordo com o presidente do Sindicato dos Escrivães de Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso (Sindepojuc), Davi Nogueira, o trabalho vai muito além do que as pessoas imaginam.
“Quando se fala em escrivão de polícia muita gente tem em mente a função de um profissional que fica disponível nas delegacias para confecção de boletim de ocorrências (B.O) ou tarefas simples, quando, na verdade, quase nunca a confecção do B.O é feita pelo escrivão, que tem outras atribuições mais complexas para realizar dentro da delegacia”, disse Davi em entrevista ao Circuito Mato Grosso.
O profissional tem que transformar um fato que aconteceu em provas para formalizar a investigação. Entre os itens de formalização de uma investigação, está o boletim de ocorrência, que é o primeiro documento confeccionado em um crime ou infração.
“O B.O é uma atribuição tanto do investigador quanto do escrivão, pois nada mais é, que uma notícia crime do fato, nele não é questionado se a pessoa está certa ou errada ou há interferência no depoimento, tudo que é relatado é colocado no documento” explica.
Davi ainda diz que no estado há um déficit de escrivães, fazendo com que a função de confecção de boletim de ocorrência geralmente acaba sendo atribuída a outros setores. Em Mato Grosso existem 700 escrivães atualmente atuando nos 141 municípios.
“Como na polícia existe um déficit de escrivães, essa função menos complexa, acaba sendo desenvolvida por estagiários ou investigadores, já que existe um número maior desses na Polícia Civil. Na Central de Ocorrências de Cuiabá, grande parte dos registros é feito por estagiários”, complementa o presidente.
Pelo número menor e importância, de acordo com Davi, os escrivães são utilizados para funções mais complexas como lavratura do flagrante, e o inquérito policial. Formalizar todo inquérito policial é atribuição do escrivão.
B.O do “corno” em Cáceres
Para o escrivão, nesse caso isolado houve um equívoco durante a confecção do boletim de ocorrência, que foi realizado por um investigador da Polícia Civil.
“A polêmica houve pela forma como a narrativa foi construída. Tem casos que é necessário fazer o uso de palavras para explicitar uma situação, por exemplo, uma mulher que vem sofrendo ameaças ou injúrias, ela vai narrar, "meu marido me xinga" disso e daquilo, para explicar a situação. Quem registra o boletim de ocorrências, ou vai fazer na primeira ou terceira pessoa, e nas palavras de baixo calão descritas, são colocadas aspas, para mostrar que quem está falando é o(a) comunicante”, explicou ele.
“No caso de Cáceres (212 km de Cuiabá-MT), na hora da confecção não houve esse cuidado e as palavras foram colocadas diretamente, e foi até desnecessário pela forma como foi falado, pois acabou ofendendo a mulher com as palavras, pois o denunciante não estava sendo vítima de nenhum crime, e acabou expondo outra pessoa em situação vexatória”, completou Davi Nogueira.
O presidente do Sindepojuc ainda disse que no caso citado houve a falta de técnica para confecção do B.O, talvez pelo investigador estar na função temporariamente e ainda não ter experiência em confecção de boletim, ou por falta do devido treinamento necessário.
Davi destacou ainda que naquela situação não havia um crime, ou seja, não tendo crime não era necessária a confecção do B.O.
“Esse caso não é caso de polícia, mas a gente acaba fazendo para dar um primeiro atendimento à população. Esse seria um caso de juizado específico. Ele pede no boletim que seja tomada as medidas, mas a polícia não tem o que fazer nessa situação. Outra situação comum que as pessoas costumam registrar em boletim de ocorrência é sobre a preservação de direito. Se a pessoa acha que tem um direito a algo, ela pode procurar a Justiça sem a necessidade de fazer um B.O”, explana ele.
O caso:
A Polícia Judiciária Civil informou que o marido que registrou um boletim de Ocorrência (B.O) alegando ser corno da cidade de Cáceres na segunda-feira (17) deverá ser intimado a comparecer na delegacia para esclarecer se realmente ele usou os termos chulos e palavras de baixo calão na confecção do registro.
O caso que gerou repercussão no estado é devido aos termos não comuns para registrar uma ocorrência. A assessoria da PJC informou que, segundo o investigador que atendeu a ocorrência, o denunciante de 50 anos teria ainda dito coisas piores, porém o investigador o convenceu a usar palavras mais “comuns” em seu depoimento.
Após o registro da ocorrência, o homem leu o boletim, assinou e ficou com uma cópia. Por ter sido registrado como ‘natureza atípica’ não é necessário nenhum procedimento policial.
Riscos e dificuldades da profissão
A grande queixa da profissão em si, nas palavras de Davi, é sobre a jornada de trabalho e perigos que a profissão oferece, apesar de muitas pessoas desconhecerem.
“A pessoa responsável por ouvir o preso, realizar os inquéritos e formalizar tudo, é o escrivão, ou seja, quem está frente a frente com o criminoso ou infrator colhendo depoimento geralmente são os escrivães, e já teve situações de em uma oitiva um escrivão ser perfurado por um criminoso” diz ele.
Questões de ameaças em ruas também é comum. Ele afirma que legalmente quem deveria fazer este papel seria o delegado, mas em muitos casos quem acaba ouvindo o preso fazendo todo o inquérito é o escrivão, e após isso o delegado lê e assina os autos.
“Às vezes um delegado é responsável por três a quatro cidades. Como ele vai ficar se deslocando de um local para o outro e dá conta de ouvir todo mundo? Muitas vezes escrivão realiza até a função de delegado em alguns municípios, mas sempre com ordens e coordenação superior nos casos”.
Outro ponto que ele diz que tem tido dificuldades é em relação ao baixo número de escrivães no estado. Muitos acabam tendo que se desdobrar e fazer jornadas de até 24h ininterruptas e ainda na sua folga ficar de sobreaviso, ou seja, qualquer situação de emergência que surgir ele tem que estar apto a atender.
“É algo até desumano. Muitos se sacrificam na carreira, mas esse sacrifício é só para o policial, pois ele faz jornada a mais, trabalha muitas vezes mais que 40 horas por semana e não recebe um centavo a mais pelo tempo que ficou disponível, servindo o Estado”.
Davi explica que outra dificuldade que os profissionais têm enfrentado, é em relação as estruturas das delegacias, que muitas estão sem condições de trabalho. Ele narra que em certos lugares, nem a cela da delegacia tem condições de receber presos.
As condições de internet são péssimas para o trabalho, segundo Davi, por ser um sistema pesado que exige muito da internet seria necessário uma boa qualidade aos profissionais.
“A internet que atende as delegacias é uma vergonha, eu mesmo trabalhei em uma delegacia aqui em Cuiabá, que era disponibilizados 500Kb para 15 computadores. É algo impossível de se trabalhar, tem policial que compartilha a própria internet para conseguir trabalhar”, denunciou ele.
As condições de cartório também estão degradantes. Davi disse informou a reportagem que no Centro Integrado de Segurança e Cidadania (Cisc) do bairro Planalto as condições lá estão difíceis, ar-condicionado pingando com baldes nas salas, banheiros sem condições de uso e paredes sujas, portas quebradas são alguns detalhes das condições ruins de trabalho em que é oferecida ao escrivão.
Para a surpresa da reportagem, ao chegar no Cisc Planalto uma reforma estava sendo feita no local, e um dos escrivães que atendeu a equipe e preferiu não se identificar falou que a obra na delegacia estava sendo feita por conta própria dos servidores e de iniciativa do delegado plantonista Romildo Souza Grota Júnior.
“Aqui não tem dinheiro do Governo. Como o doutor Romildo viu que a situação aqui estava difícil para trabalhar, reunimos nós mesmos, fizemos cota e compramos tinta para pintar as salas e realizar a manutenção dos ar-condicionados”, explicou o escrivão.
Em obras, o banheiro continuava sem condições de uso. Um dos entrevistados disse que quando ele precisa fazer as necessidades vai em casa, pois ali não dá para usar.
Davi Nogueira fez uma denúncia em relação à alimentação servida aos profissionais de plantão e que está sendo jogada fora, porque não dá para comer o que é servido.
“Já encaminhamos documentos ao governo, informando que 100% da comida servida no plantão da noite têm sido jogada fora. Primeiro a comida chega às 16h, já vem morna quase fria, o plantonista entra às 19h, tem vários afazeres e coisas a organizar, quando vai jantar por volta das 21h, o alimento não dá para comer, a carne fica com nata de gordura, fria e muitas vezes até mofa pelo tempo de espera e é toda desperdiçada. Já foi alertado mais de uma vez que tem se jogado dinheiro fora, pois essa comida ninguém aproveita”, comentou ele.
A escrivã que estava de serviço no Cisc Planalto no dia da entrevista, confirmou a versão de Davi e disse que os profissionais muitas vezes têm trazido de casa uma comida de melhor qualidade, ou feito cotas e comprado o próprio alimento.
“Além de fria, quando se vai comer a comida é de péssima qualidade. Não queremos ou estamos exigindo carne de primeira ou comida chique, pode servir arroz com feijão, mas que tenha qualidade e sabor e dê para comer, pois a comida que servem para gente, sinceramente é difícil”, explicou ela.
Policiais já pediram exoneração devido as más condições de trabalho, e carga horária puxada em que é submetido.
“Muitos apresentam problemas de saúde, psicológico e psiquiátricos, pois a pressão para desempenhar a função é grande. O escrivão tem uma responsabilidade muito grande. Diferente do investigador ou delegado, que podem sair para se alimentar, o escrivão não pode deixar a delegacia, porque todo o serviço trava. É muito difícil e o nível de estresse da profissão é muito alto”.
Concurso e lutas
O Sindepojuc tem discutido com o governo alguns pontos para a melhoria do desempenho dos profissionais nas delegacias. Além de melhores condições nos cartórios, é cobrado um aumento do efetivo do número de escrivães. Hoje para atender o estado com o mínimo de eficiência e qualidade seriam necessários 1.400 profissionais, o dobro do que existe hoje.
Em relação em concursos o número de vagas para escrivão ser menor que do investigador, ele contesta e desaprova.
“A questão dos concursos é uma pauta do sindicato, pois queremos saber da onde eles tiram esse número, já que atualmente as investigações estão sendo realizadas nos cartórios e todas as informações estão sendo online. É diferente a investigação hoje, de 10 a 20 anos atrás, que o investigador precisava ir para a rua para conseguir informação, hoje você consegue isso no computador”.
“Com isso, entendemos que precisamos de mais pessoas nos cartórios, do que na rua, e isso temos questionado o governo, de onde eles tiram que precisa de mais investigadores que escrivães? Temos tentado corrigir essa distorção. Acreditamos que pode estar na ilusão de que pelo fato de que função da Polícia Civil é investigar, é necessário um número maior de investigadores e essa visão está errada, e muitas vezes o próprio governante desconhece como funciona a polícia em si e acaba cometendo esse tipo de equívoco”, completou Davi.
Para provar que é um erro os concursos com poucas vagas para escrivão, Davi diz que no estado tem muitos escrivães Ad-hoc (pessoa nomeada para fazer a função de escrivão, sem ser concursado para a funçao).
“Ou seja se você precisa desviar a função de um policial para ele atuar como escrivão, ou contratar estagiários, é porque falta mão de obra. E se falta, o concurso foi feito errado, com número abaixo do que o necessário. No interior há estagiários atuando nos cartórios que são funcionários de prefeitura. Um erro e absurdo essa situação, afinal estão tendo acesso a informações sigilosas sem serem policiais”, explicou o presidente.
O Sindicato busca em relação ao governo que seja paga a etapa alimentação que já é pago a Polícia Militar para que eles também receba e as queixas e reclamações em função da alimentação não aconteçam mais.
Em relação ao curso de formação, ele questiona de não ter escrivão ou investigador dando cursos, somente delegado.
“Como você pode falar para uma pessoa dar um curso de prática cartorária se a pessoa não sabe como se faz a prática, se ensina errado no curso, a pessoa vai ser formar fazendo errado e ficar o resto da vida fazendo do mesmo jeito, achando que está fazendo o certo, e isso não dá. Já estamos discutindo essa situação com o governo também”.
Para finalizar, Davi, que é escrivão há 10 anos, diz que seria necessário o governo investir em cursos na área seja de práticas cartorárias, curso de tiros e investir no profissional, para que o serviço fosse bem feito e qualificado.