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O cupim em versão nobre e sofisticada

O cupim vive um momento de protagonismo nos restaurantes do País. Aquela corcova característica dos bois, que funciona como reserva energética do animal, deixou de ser apenas memória afetiva de churrasco de fim de semana para se tornar estrela de cardápios sofisticados – da entrada ao prato principal, do espetinho ao croquete, da grelha ao sous vide.

A transformação não aconteceu por acaso. Ela é resultado de uma soma de fatores que inclui técnica apurada, resgate da cultura regional, sustentabilidade e a maturidade de um público que aprendeu a valorizar sabor acima de nomenclaturas. “As pessoas começaram a respeitar e a entender os cortes ‘não nobres’. Quando feita com técnica, cada carne tem o seu potencial”, diz o chef Pedro Godoy, que comanda os restaurantes Arvo, Voar e Terra, no Recife.

O que separa o cupim ressecado e duro daquele que derrete na boca é puro domínio técnico. Rico em colágeno e gordura entremeada, o corte exige paciência e precisão. O colágeno, quando exposto diretamente a altas temperaturas, tende a contrair e endurecer. A solução está na cocção lenta e prolongada, que quebra as fibras e transforma o que poderia ser borracha em suculência.

Mas há um desafio anterior à cozinha: a escolha da peça, que precisa ter equilíbrio entre carne e gordura. “É uma avaliação que não é só técnica: é de olho e de mão”, explica o chef Ian Baiocchi, do Grupo Íz, em Goiânia. Para ele, a proporção ideal é 65% carne e 35% gordura. O consultor Henrique Freitas, do Assador, reforça. “Buscamos cupins bem marmorizados e com ótima cobertura de gordura para entregar o que se espera desse corte”, diz.

Na cozinha, os métodos variam. No Lena, em São Paulo, o chef Mário Santiago dedica três dias ao preparo: 24 horas de marinada, selagem, 12 horas de cocção em sous vide (a vácuo), resfriamento e porcionamento. “O desafio está em cozinhar em baixa temperatura para amaciar as fibras sem extrair demais seus sucos”, explica. O resultado é uma carne caldosa, que desmancha, remetendo à tradição mineira da carne de panela.

Já Baiocchi defende abordagens diferentes conforme o prato. “No espetinho, por exemplo, é direto da grelha. Não é aquele cupim que desmancha, ele tem textura, mordida”, explica. Em preparos longos, o chef usa o caldo para construir sabor e devolve a gordura ao tecido. Ele só não usa papel-alumínio para assar na churrasqueira. “A gordura fica presa e você perde o controle do processo.”

Pedro Godoy aposta na combinação de técnicas. “Tostar a carne antes do cozimento lento gera sabor de caramelização. Combinar umidade com calor seco para deixar a carne suculenta e macia, com caldo bem saboroso e cheio de colágeno”, diz. No Arvo, esse caldo vira a base de um croquete que é carro-chefe desde o primeiro dia.

Estigma

Classificado como carne de segunda, o corte carregava o estigma de ser adequado para panela de pressão, jamais para a grelha ou para brilhar sozinho no prato. Mas essa percepção está mudando.

“É uma carne que sempre foi classificada de forma errada, como se não fosse boa para grelha, para ser servida como bife”, diz Yves Saliba, chef mineiro que coloca cupim no recheio do agnoloti do Cucina di Pastaio.

Para ele, o cupim tem de ter textura. “Não pode ser aquela coisa que você coloca na boca e parece que não colocou nada.”

Freitas é ainda mais enfático. “Cupim não é produto de segunda, muito pelo contrário. Quando é selecionado com critério e passa por um trabalho cuidadoso de cocção, tempero e, principalmente, tempo, ele entrega algo único e de muito valor”, explica.

A gordura abundante, quando o corte está no ponto ideal, estimula as glândulas salivares, criando uma experiência de suculência que poucos cortes conseguem igualar. “É uma carne com um nível muito alto de gordura entremeada, então, quando ela passa por longa cocção, essa gordura derrete e lubrifica a carne. E, como tem muita gordura, também tem bastante sabor”, explica Saliba.

Curiosamente, o preconceito não é uniforme no Brasil. Em Goiânia, o cupim dispensa apresentações. “Quando você pensa em espetinho, ele é o primeiro corte que aparece, é quase um símbolo da cidade”, conta Baiocchi. “Eu sempre cozinhei aquilo que gosto de comer, então o cupim entrou naturalmente nas casas. Ele está presente em todos os cardápios do Grupo Íz, porque traduz duas coisas que guiam meu trabalho: identidade regional e conexão com o público. As pessoas se reconhecem nele.”

No Recife, a história é parecida. Godoy incluiu o cupim desde o primeiro dia do Arvo, e ele se espalhou pelos outros dois restaurantes do grupo. “Na nossa região, é um corte muito popular e bem aceito. É nosso carro-chefe”, diz.

O Origem, na Bahia, também colhe os frutos de uma mudança de mentalidade. “A pessoa não ia a um restaurante para comer miúdos ou um galeto. Era comum pensar que trabalhar com proteínas mais baratas desvalorizava a experiência. Mas aí a gente provou o contrário”, diz Lemos. A estratégia do restaurante de enaltecer ingredientes inusitados criou uma clientela aberta a experimentações.

No Koral, no Rio, o chef Pedro Coronha observa um fenômeno interessante. Há clientes que trazem insumos de suas regiões de origem, como feijão-verde e pequi, e pedem para o chef experimentar e preparar à sua maneira. Quando o restaurante coloca rabada ou cupim no menu, a demanda dispara naturalmente.

No Sudeste, de modo mais geral, a conquista ainda está em processo. Saliba nota que “se temos ancho, chorizo ou costela no cardápio junto com o cupim, ele acaba precisando disputar espaço para se consolidar”. No Lena, o cupim é o segundo prato mais vendido. Já no Assador, no qual o rodízio custa R$ 262, o corte é muito pedido. “Em São Paulo, ele é extremamente requisitado, e nossos clientes pedem de forma espontânea porque já o reconhecem e sabem o que esperar”, afirma Freitas.

Valorização

O interesse pelo cupim está ligado a uma ampla transformação na gastronomia brasileira. Por anos, o País olhou para fora em busca de referências, valorizando cortes europeus e raças estrangeiras como angus e wagyu. Chefs como Henrique Fogaça, do Sal, ajudaram a mostrar “o outro lado” da carne – a casa do jurado do Masterchef tem em seu carro-chefe cupim, farofa de banana e mandioca cozida. “Por um tempo, começamos a olhar demais para cortes europeus e para raças estrangeiras, subvalorizando o Nelore que temos aqui”, analisa Saliba. “O Nelore de abate, com boa alimentação e manejo adequado, tem qualidade incrível. Os cozinheiros passaram a querer usar uma carne nacional, trazendo de volta ingredientes nossos.”

Santiago aponta ainda para o ótimo custo-benefício de pratos com o corte, “barato e saborosíssimo”. Mas há também uma questão ética. Segundo Freitas, “o cupim representa um aproveitamento completo do animal, algo fundamental quando falamos de sustentabilidade”.

Coronha enxerga uma mudança de mentalidade mais profunda. A antiga separação entre carnes de primeira e segunda está ficando para trás. O que importa, agora, é a qualidade do produto e a forma como ele é preparado. E há, claro, a questão da maturidade do público. Santiago acredita que “as pessoas estão cada vez mais abertas a acreditar na proposta de um restaurante, explorar coisas novas, provar um pouco de tudo”.

Lemos ainda observa um efeito colateral interessante. “Quando o cliente vai ao restaurante e vê o potencial do cupim, a tendência é que ele queira fazer em casa”, conta. É o ciclo virtuoso: o que antes era visto como ordinário ganha status em menus refinados e volta, prestigiado, para as cozinhas domésticas.

“A gastronomia brasileira entendeu que não precisa pedir licença para trabalhar seus cortes e seus modos de preparo. Quando você cozinha com verdade, a mesa acompanha”, resume Baiocchi.

Estadão Conteudo

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