A cidade de Várzea Grande, à parte sua promessa antiga de ser polo industrial do Estado, é hoje em dia pouco visada para quem deseja fazer grandes investimentos. Ausência de infraestrutura básica (falta de rede de esgoto, ruas sem asfalto ou com este destruído, abastecimento de água sofrível) sempre foi o problema a afastar grandes empresas e até mesmo moradores mais abastados, que sempre criaram ilhas de privilegiados em meio ao caos.
As mais recentes delas avançaram agora sobre a região do distrito da Passagem da Conceição, localizada na parte ainda preservada do rio Cuiabá, em meio à vegetação abundante. Lá, em uma área total de cerca de 40 quilômetros, estão sendo instalados diversos condomínios fechados, como o Chapéu do Sol e mais um dos luxuosos Florais da Construtora Ginco; no caso de lá, apropriadamente chamado de Florais da Mata (apesar do risco de embargo do empreendimento, devido a um pedido do Ministério Público Estadual, conforme matéria nesta mesma página porque a concessão foi para 621 unidades, mas estão sendo negociados 645 lotes).
Também há pontos turísticos como o Mirante do Pary (a ser construído na gleba do rio Pari, uma sesmaria concedida pelo rei do Portugal ainda nos tempos do Brasil colônia), a chamada Rota do Peixe e a própria Passagem da Conceição, além, claro, da promessa de tranquilidade e paz de um lugar localizado em meio à vegetação intocada e de frescor às margens do rio. “Eles prometeram faz tempo que iam trazer um monte de coisa pra cá, mas isso já tem anos e a única coisa que chegou até agora foram um corpos que acharam aí, além de vários carros roubados, que agora, toda semana, acham um aí”, contou à reportagem o aposentado seu Antônio (nome fictício), morador do distrito.
Sentado no meio da praça, conversando com outros dois amigos, em meio às risadas irônicas deles, a preocupação é unânime com os rumos a serem dados à região em que moram há mais de 72, 40 e 30 anos, respectivamente, pois todos “nasceram e foram criados” ali. Mesmo o mais novo vê com receio o que antes parecia progresso e melhoria. “Estão fazendo tudo lá pro rumo do Chapéu do Sol e do tal Florais, pra cá só tá vindo o que não presta mesmo: bagunça, lixo, corpos e carros desovados”, contou, sotaque carregado, o ajudante de pedreiro José (nome fictício). Ele lembra também que lá “o pouco asfalto que tem é bem ruim”.
Os atrativos oferecidos pelas construtoras e corretores imobiliários incluem a proximidade com a capital (cinco minutos de carro), estrada boa, ponte duplicada (a Mário Andreazza), fácil acesso ao aeroporto Marechal Rondon e vizinhos nobres como o novo campus das Universidades Federal de Mato Grosso (UFMT) e do Estado (Unemat), além do Instituto Federal de Educação (IFMT), um novo complexo jurídico e boa parte da administração da cidade. Já há pelo menos três condomínios abertos e com gente morando por lá, como o Parque Genebra.
A cerca de um quilômetro e meio do distrito, 15 minutos depois da conversa na Praça da Passagem, uma equipe de reportagem do Circuito Mato Grosso é recebida (sem se identificar como tal) por um corretor no prédio da administração do Florais da Mata. Ele oferece água e café, explica que aqueles são os últimos lotes disponíveis, “todos os outros já foram vendidos”, e inicia uma palestra sobre a oportunidade de investimento para se ter uma propriedade nos mais de 600 mil m2 ocupados pelo condomínio.
“Por um preço muito bom [a saber, R$ 216 mil, à vista, os menores, de 380 m2] vocês vão morar muito bem, perto de Cuiabá e de todos os órgãos importantes de Várzea Grande, além das universidades e um centro tecnológico, e vão valorizar seu capital em até 50% em dois anos. Também vão estar numa ótima vizinhança. Tudo isso sem contar que vocês já repararam a visão que tem daqui, né?”, pergunta e argumenta o corretor de 34 anos, bem vestido, sorriso de orelha a orelha, atitude típica de quem “deu certo na vida”.
Os com mais dinheiro podem optar pelo outro modelo de lote, de 810,10 m2 para desfrutar também da tranquilidade de segurança armada, guarita, portão eletrônico com porteiros 24 horas – a conclusão de um complexo esportivo – o Centro de Treinamento do Pari, prometido para a Copa 2014 – para as famílias desfrutarem momentos de lazer e saúde na caminhada, corrida ou demais exercícios físicos possíveis em espaço aberto.
A promessa é que passe longe de lá um problema recorrente em Várzea Grande relacionado ao saneamento básico, quesito no qual a cidade ocupa uma posição bastante desconfortável, de acordo com o relatório de Estudos do Instituto Trata Brasil realizados entre 2011 e 2016 e divulgados em abril. Nele, a cidade está entre as 15 piores quando o assunto é investimentos básicos de saneamento. Também não vai faltar água, porque haverá uma central de abastecimento por lá, garantiu o corretor.
Todos os folders dos condomínios da região relembram outro dado preocupante para ambientalistas ou quem simplesmente pensa sobre o futuro do rio Cuiabá: a área onde está localizada a maioria dessas novas casas está perto demais dos 250 mil metros quadrados de área de preservação permanente apontados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema). Segundo a Ginco, “o que garante um clima mais ameno e um ar fresco para você e sua família acordarem ao som de passarinhos, bem longe das buzinas, do ar poluído e do trânsito”.
Paz, tranquilidade e vida idílica buscada pelos com mais dinheiro há séculos, como explica a historiadora Neila Barreto, que lembra à reportagem que quem por ali habitou por último, já no final do século 19, foi o padre Ernesto Gomes Barreto. Ele comprou o Pari inteiro e decidiu construir, na margem cuiabana, um casarão e também um educandário de moldes franceses, em sistema de internato. “Quando pequena, nós vínhamos do Pari contornando pelo bairro Santa Rosa, inclusive, eu lembro bem. Anos depois, quando comecei a pesquisa, acabei por descobrir que esse padre é tetravô do meu marido”.
Do lado de lá, os portugueses da sesmaria foram substituídos por brasileiros mato-grossenses, que fundaram o recente distrito de Passagem de Nossa Senhora da Conceição. Ou seja, diferentemente do restante de Várzea Grande, aquela região sempre foi cobiçada, tanto faz se pelo rio, devido aos passarinhos ou simplesmente por causa da paisagem bucólica, idílica.
MP quer embargar a venda do Florais da Mata
Mal chegou a ser loteado e vendido (já há casas em fase de acabamento, inclusive) o primeiro e único condomínio de luxo de Várzea Grande já está sob a mira do Ministério Público Estadual (MPE). Em ação da promotora de justiça Maria Fernanda Correa da Costa, o residencial criado e vendido pela Ginco Alfa Incorporações Ltda teve o parcelamento do solo naquela região considerado irregular.
Para Correa da Costa, os atos de desmembramentos, unificações, fusões e desdobramentos acontecidos na gleba de terras originárias da Sesmaria do Pary geraram imóveis e matrículas individualizadas irregulares e, por isso, ilegais, devendo, assim, ser desconstituídas e anuladas. De acordo com matéria do site O Documento, imóveis e matrículas contrariaram leis federal e a municipal de parcelamento do solo urbano.
Confirmada pelo MPE, há outra ação da Promotoria do Meio Ambiente e Ordem Urbanística da Comarca de Várzea Grande questionando a correta destinação do esgoto no local. Também não há muita informação quanto à fonte de água que irá abastecer o condomínio.
O início da denúncia, revelou a fonte do site, começou com uma picada utilizada pelos antigos moradores da região. Segundo eles, a Ginco cercou esse lugar, os obrigando a dar uma volta para chegar até suas casas. A região é disputada por vários requerentes e por isso considerada, como boa parte das regiões de sesmarias, uma das problemáticas do Estado quando o assunto é a titulação dos imóveis, normalmente com dois ou mais documentos de posse.
De uma área total de 284 hectares (ha), foram desmembrados 60 ha para realização do empreendimento Florais da Mata. Tudo certo, tudo bonito. Entretanto, surgiram dois problemas: o primeiro foi que entre 12 donos da área, somente 10 fizeram acordo com a Ginco, sendo que um deles faleceu há pouco tempo, tornando a parte dele um litígio para feitura de inventário e divisão dos herdeiros.
O segundo foi que o MP decidiu utilizar o aplicativo Google Earth para comprovar que antes de 2004 já existia uma passagem dos antigos moradores na área citada e admitida pela empresa, dando razão e sustentação à denúncia.
A isso juntou-se o fato de os desdobramentos das áreas necessitarem de prévios processos de aprovação de plano de loteamento e arruamento. Para a promotora, os desmembramentos ocorreram somente de modo a satisfazer o interesse privado, resultando em “nítido prejuízo para o desenvolvimento da cidade”. Os proprietários simplesmente fracionaram a extensa gleba de terras sem qualquer aprovação prévia da municipalidade, plano de loteamento ou arruamento.
Logo, o MPE recomendou à prefeitura de Várzea Grande a não emisão do habite-se ao Condomínio Florais da Mata até a correção de todas as irregularidades. “Fica evidenciado que ocorreram inovações viárias e prolongamentos fraudulentos de ruas que se pretendem ilicitamente doar ao município de Várzea Grande, destinadas a lugar algum, e sem que tenha havido um prévio resguardo de áreas proporcionais de uso comum”, diz outro trecho da denúncia.
Correa da Costa considera que o objetivo das doações de ruas foi apenas fraudar a ordem urbanística mediante aproveitamento econômico, já que o correto é a destinação de áreas (pelo menos 35% de toda a gleba Sesmaria Pary, de 284.831 hectares) para implantação de equipamentos urbanos e comunitários, sistemas de circulação e espaços livres de uso público.
Áreas verdes também foram inseridas no interior do condomínio e até mesmo áreas de preservação permanentes. Também não houve, sempre de acordo com a denúncia, destinação de 10% de áreas para implantação de equipamentos urbanos e comunitários. Daí em diante, os empresários resolveram inserir a área de 10 hectares onde está localizado o inacabado COT do Pary como equipamento comunitário. E aí surge outro problema, pois a área está em litígio.
A promotora ambiental pediu, por fim, que a Ginco apresente diversos documentos, entre os quais: ato de aprovação pelo município do parcelamento e de anuência em alteração de 621 para 645 unidades autônomas; alvará de execução (construção) e alvará de operação (habite-se); demonstração de que será assegurado livre acesso da população (não só dos moradores do condomínio) às áreas verdes; demonstração de que 10% da área líquida loteada foi destinada à implantação de equipamentos urbanos e comunitários; todas as licenças ambientais expedidas pela Sema, acompanhadas dos pareceres técnicos do empreendimento Condomínio Florais da Mata; outorga concedida pela A.N.A. para diluição no rio Cuiabá do esgotamento sanitário e apresentação dos projetos elaborados e aprovados pelo município de Várzea Grande que abranjam as inovações viárias na gleba de terras Sesmaria do Pary.
E não para por aí, pois há também pedidos de demonstração de que todos os requisitos urbanísticos dirigidos aos loteamentos previstos nas leis federal e municipal foram satisfeitos nos desmembramentos e desdobros dessa mesma sesmaria; demonstração de que houve a destinação de 35% da gleba Sesmaria do Pary, de 284.831 hectares, para implantação de equipamentos urbanos e comunitários, sistemas de circulação e espaços livres de uso público, demonstração de que houve prévia aprovação dos planos de arruamento e de loteamento pelo município de Várzea Grande e cadeia dominial da gleba com todas as matrículas e registros delas originadas.
Prováveis consequências
“Para a engenheira sanitarista Eliana Rondon Lima, o processo de urbanização verificado na Bacia do Rio Cuiabá, ao longo dessas últimas décadas, resultou na contaminação dos córregos, com acentuado comprometimento da qualidade de suas águas. Esses córregos, principais tributários do rio Cuiabá, tornaram-se canais preferenciais, condutores de cargas orgânicas de esgoto doméstico do rio. Isso não pode acontecer no Pary”, explica a jornalista e mestre em história Neila Barreto.
Outro lado
Procurada para falar sobre como seria feita a destinação do esgoto e de onde viria a água que deverá abastecer o Condomínio Florais da Mata, a Ginco Alfa Empreendimentos disse, por meio de sua assessoria de marketing/comunicação, que às 16h15 da tarde de uma quarta-feira (2) era muito tarde para encaminhar pedidos, que “não gosta de falar mais ou menos sobre as coisas” e que a única engenheira responsável por “falar adequadamente” sobre isso estava em campo e portanto não poderia responder sobre o assunto antes desta quinta-feira (3).
Procurada, a prefeitura de Várzea Grande negou, também por meio de sua assessoria de comunicação, que haja movimentação ou construção de um novo polo judiciário ou administrativo do município na região ou que esteja em curso a construção de uma nova Várzea Grande. “O máximo que pode haver ali é a transferência de uma ou duas secretarias da administração municipal para lá”, de acordo com o secretário de Comunicação de Várzea Grande, Marcos Lemos, que também não citou quais seriam elas.
Povos Guanás e Guerra do Paraguai na história de VG
Com 150 anos, o primeiro povoamento de Várzea Grande era considerado um local de morada dos povos indígenas. O primeiro núcleo da cidade nasceu em 1832, após uma doação da sesmaria aos povos indígenas Guanás, hábeis canoeiros e pescadores que habitavam esse território e foram “incorporados” aos colonizadores europeus como empregados por serem considerados “dóceis” e fáceis de lidar. O primeiro nome da cidade era “Várzea Grande dos Guanás”.
A região foi profundamente marcada pela Guerra do Paraguai (1864-1870). Foi após a invasão do território mato-grossense pelas tropas de Solano Lopez, que a relação entre os povos da fronteira ficou estremecida e Várzea Grande passou a ser uma localização estratégica para a capital da Província.
Em 15 de maio de 1867, o general José Vieira Couto de Magalhães decidiu que o local seria parte do “Acampamento Couto de Magalhães”, próximo à barra do rio Coxipó. Porém, em Várzea Grande, que fica do lado esquerdo (contrário à localização da capital), ficariam os paraguaios.
Na época, por conta da guerra e da epidemia de varíola, todos os paraguaios que residissem na capital foram “relocados” para a região, separada de Cuiabá pelo rio. O deslocamento da suposta população “inimiga” acabou atraindo um grande fluxo de mulheres paraguaias para a região com o fim da guerra. Passado o conflito, o modo de vida ribeirinho dos primeiros moradores da região tomou conta novamente do cotidiano de Várzea Grande.
Cuiabanos e várzea-grandenses foram de fato conectados após a construção da primeira ponte no rio Cuiabá, em 1942, pelo interventor Júlio Muller. Com a construção do Aeroporto Internacional Marechal Rondon, em 1956, a mais próspera vizinha da capital cresceu em importância para todos os habitantes