Opinião

No coração de Cuiabá, Artíndia

Jacutinga novamente em meio aos artefatos indígenas. Dessa vez, resultantes da produção de diversos povos. E foram tantos: Boe Bororo, Balatiponé, Iny Karajá, Kura-Bakairi, Tapirapé, Nambikwara, Kawaiwete, Kadiwéu, Zoró, Rikbaktsá, Wauja, Yudja, Paresi, Pãzérey, A’uwe, Kalapalo, Wari’…

Cerâmica, plumária, armas, utensílios e implementos, trançados, cordões, tecidos, instrumentos musicais, adornos, objetos mágicos e lúdicos. Em um único espaço, milhares de artefatos produzidos no ambiente aldeão. Magismo. Ancestralidade. “Linguagem visual”, no dizer de Berta Ribeiro. “Objetos, corpos parciais e integrais”, no dizer de Lucia Hussak van Velthem. Esse reencontro deu-se nos idos de 1990, quando Jacutinga foi para o Serviço de Artesanato Indígena da Superintendência Executiva da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Cuiabá, com vistas a intensificar as atividades culturais na Artíndia, uma loja de artesanato indígena, locatária de um imóvel localizado no trecho íngreme da rua Comandante Costa, Cuiabá. Nessa cidade, empenhou-se na propagação de ações de valorização das culturas indígenas lado a lado à aquisição e comercialização da produção dos povos indígenas, estas sob a direção de Adelaide Soares Sodré.

De imediato, Jacutinga, com apoio dos colegas, empenhou-se na transferência da Artíndia para um imóvel de propriedade da Funai, à rua Barão de Melgaço, centro histórico da capital mato-grossense, outrora sede do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), naquele momento ocupado pela assessoria jurídica da instituição. O feito foi selado: elevando-se do tom amarelo claro que cobria a pintura do portão de duas faces do local onde já se instalara a Artíndia, em vermelho, um casal Boe Bororo projetava-se aos transeuntes. Em primeiro plano, em postura solene, um homem vestido com uma coroa radial a rodear sua cabeça como uma auréola, brincos de conchas fluviais, narigueira perpassando um pequeno orifício no septo nasal, labrete logo abaixo do lábio inferior e um protetor peniano amarrado a um cordel na altura dos quadris; uma mulher sustentando um cesto-cargueiro suspenso por uma tira próxima à testa, vestia uma faixa larga de onde pendia transversalmente uma tira estreita a encobrir sua região pubiana e, sobre seus ombros, uma criança.

Esse desenho, presente no livro “Viagem fluvial do Tiete ao Amazonas”, de autoria de Hércules Florence, francês que se estabeleceu no Brasil no século XIX, foi seletado por Jacutinga. Seu desejo consistiu em exaltar pela iconografia o povo Boe Bororo na cidade de Cuiabá, outrora, antes da invasão dos bandeirantes no início do século XVIII, uma fração de seu território de ocupação milenar. Acompanhando a imagem, “No coração de Cuiabá, Artíndia”.

Jacutinga adicionou ao pátio interno da recém-construída Artíndia, três esteios de aroeira, resquícios do antigo imóvel do SPI, demolido. A céu aberto, foram erguidos um próximo ao outro, criando no piso de tijolinhos uma figura triangular. As extremidades dos esteios que permaneceram encobertas pela terra desgastaram-se pela ação do tempo. Assumiram forma afunilada. Jacutinga associou-os aos estrepes colocados pelos povos indígenas isolados, armadilhas defensivas de madeira lascada e aguçada nas extremidades, utilizados para estorvar os caminhos que dão acesso à aldeia, estratégia destinada a afastar invasores de seus territórios. Esses apetrechos de defesa, instalados em grande quantidade e encobertos com folhagens secas, são adequados para perfurar pés e, até mesmo, pneus.

Para Jacutinga, aqueles três únicos esteios do antigo casarão do SPI erguidos no pátio da Artíndia significavam as constantes ameaças sofridas pelos povos indígenas diante do avanço das frentes econômicas e das mentalidades colonialistas ainda extremamente violentas; significavam que aquele espaço abria seus portões aos povos indígenas não somente para a aquisição de seus artefatos, mas também para evocarem suas expressões que fundamentam o reconhecimento de seus direitos à diferença, aos saberes ainda tão invisibilizados; significavam um impedimento simbólico à invasão avassaladora do ocidentalismo contra os povos indígenas.

Anos mais tarde os esteios foram arrancados e aquele jovem casal Boe Bororo não existe mais.

Anna Maria Ribeiro Costa

About Author

Anna é doutora em História, etnógrafa e filatelista e semanalmente escreve a coluna Terra Brasilis no Circuito Mato Grosso.

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