A primeira crônica do ano recém-iniciado faz homenagem à saudosa indígena Nice Kuioto, da etnia Boe-Bororo, da aldeia Perigara, no Pantanal Mato-grossense. O desejo é de que a arte oleira produzida pelas mãos de Kuioto reverencie Sônia Guajajara, à frente do Ministério dos Povos Indígenas, e Joênia Wapichana, Presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
Cozimento de panelas de barro em achas de madeira de lei.
Oficina realizada aos cuidados de Nice Kuioto.
Foto: Fred Fogaça (2006)
No processo de colonização que incidiu na invasão de suas terras de ocupação tradicional, o povo Boe-Bororo sofreu, não sem resistência, todo tipo de violência. A colonialidade se propagou nas aldeias, a obrigar a lógica de relações coloniais aos saberes e modos de vida indígenas. Reunido inicialmente em Colônias Militares, estas transformadas no decorrer do tempo em Reduções Religiosas e Postos Indígenas, o povo Boe-Bororo ocupa atualmente as Terras Indígenas Sangradouro, Meruri, Tadarimana, Tereza Cristina, Perigara e Jarudori.
Neste texto-celebração ao povo Boe-Bororo, na pessoa de Nice Kuioto, pertencente ao clã Wagudugodo Kujagureu, releva-se a habilidade de mãos femininas ao darem forma ao barro para se transformarem em belos potes, hoje destinados à guarda de alimentos sólidos, água e outras bebidas. As personagens que figuram essa história, além de Nice Kuioto, são mulheres indígenas que têm a oportunidade de reviver um complexo de concepções e significados reelaborados pela técnica da cerâmica, desde a escolha do barro ao uso das peças já queimadas e prontas à vida doméstica e cerimonial. O barro, antes de ser transportado para a aldeia em grandes cestos-cargueiros, deve ser provado. Foi Nice Kuioto quem ensinou as mulheres que o barro dever ser levado à boca e mastigado para se ter a certeza de que é de boa qualidade.
Cozimento de panelas de barro em achas de madeira de lei.
Oficina realizada aos cuidados de Nice Kuioto.
Foto: Fred Fogaça (2006)
Cada uma das personagens que figura a trama oleira responsabiliza-se pela reescrita da história das ceramistas, do povo Boe-Bororo. A tradição da arte oleira, por pouco apagada pela violência do contato com a sociedade não indígena, beneficia-se pela jazida de argila encontrada a uma grande distância da aldeia, às margens do rio São Lourenço.
Mãos femininas na função contínua da transmissão do saber da arte oleira. Trazem à tona da vida aldeã conhecimentos sobre ambiente, matéria-prima, tecnologia, adaptação ecológica, valores estéticos e códigos simbólicos que são compartilhados pelos membros da sociedade Boe-Bororo.
A arte oleira de Nice Kuioto, aos 80 anos, foi consagrada pela Secretaria de Cultura do Estado de Mato Grosso com a exposição “Nice Kuioto e a tradição da arte oleira Bororo” (17 a 24 de abril de 2006), ocorrida na Biblioteca Pública Estadual Estevão de Mendonça, na Sala de Estudo e Pesquisa da Cultura Indígena, esta criada por Vera Baggetti, então Gestora Cultural da Secretária Estadual de Cultura de Mato Grosso.
Assim como as chamas das fogueiras transformam o barro em artefatos, que também iluminem cada um dos passos de Sônia Guajajara e Joênia Wapichana nos cargos que, por suas altivas lutas em prol dos direitos dos povos indígenas, passam a ocupar. Tempo de ‘união e reconstrução’. Nas palavras de Raoni Metuktire, líder de todos os povos indígenas, tempo de ‘viver em paz’.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.