Por: Jose Vitor Gargaglione
Não sentei para chorar. Foi tudo muito rápido. Na minha mente, apenas uma certeza: O homem é fruto de suas escolhas. Essa insofismável lei de causa e efeito tinha, mais uma vez, me acertado em cheio. Dessa feita, certeiro e mortal, o projetil de uma célula defeituosa me atingiu na bexiga, rasgando em sua trajetória todos os planos e sonhos que tinha para esse ano.
A ilusão da vitalidade que esbanjava não foi suficiente para encarar um diagnóstico de câncer. Ainda mais um tão agressivo, que invadia a camada muscular da bexiga. Os médicos consultados eram unanimes, precisava operar. Uma cirurgia cheia de riscos e incertezas. Ou então, me submeter a uma radioterapia e, depois, a uma quimioterapia para tentar extirpar o tumor. A dúvida, inimigo cruel, invadia meu coração.
Esse foi o ápice da enorme angustia que passei desde o instante em que recebi o laudo da biopsia. Realmente, onde há dúvida, há conflito. E o conflito destrói toda esperança. Acaba com a nossa energia moral, pois, nos envolve em uma nuvem de emoções negativas.
Naquele momento, só o que via, erroneamente via, era o que estaria deixando de viver. Era aquela estrada imaginária que já havia traçado em minha mente e não queria me desviar. Não admitia, que a vida em sua ânsia, pudesse criar um atalho que me tirasse do caminho que projetei em meu inconsciente.
Relato isso, porque temos a grande facilidade de não nos importar com a estrada dos outros, a menos que essa estrada passe a ser o nosso único caminho. E nessa jornada que se chama vida, pouca coisa nos nivela. A doença e a perspectiva da morte, acabam tendo essa dimensão, de socializar o sofrimento humano.
Se a perspectiva da morte faz com que alguns homens se apeguem a racionalidade da ciência médica na tentativa da salvação, eu percorri o caminho oposto. Já tinha me deparado com a morte antes. Inclusive, tendo tomado até extrema-unção. Tinha acabado de sair de três tratamentos dolorosos, feitos de forma consecutiva, para negativar um vírus que veio em decorrência de uma transfusão de sangue. E eu sabia, que a estrada que estava prestes a percorrer, não seria só de pedras. E que nesta jornada eu não estaria só.
A escolha foi difícil. Mais uma vez tinha que ser forte. O homem quando se vê diante do desconhecido ou se fragiliza ou se fortalece. A decisão veio rápida. Não tinha mais dúvida. No dia 05 de abril, presenteando meu filho Viktor em seu aniversário de quinze anos, me submeti a chamada cistectomia radical com a reconstituição da bexiga, que iria funcionar como reservatório urinário feito de uma porção do intestino. A maior e mais complexa das cirurgias urológicas.
Começava então, nova jornada. Dessa feita, em uma estrada cheia de incertezas, me apeguei a única certeza que tinha: Deus. Pedi para que fosse afastada toda a estupidez do meu senso crítico. A fé não comporta dúvidas. Resolvi encarar a doença com dignidade. O câncer merece o nosso respeito. É uma doença fatal.Com ele não se brinca.
Entrei no centro cirúrgico com 30% de chances de ter um prognóstico favorável. Os mais otimistas afirmavam que a reconstituição da neobexiga não daria certo e eu ficaria fadado, o resto da vida, a usar uma pequena bolsinha externa para coletar a urina. Contrariando as expectativas dos especialistas a intervenção cirúrgica foi um sucesso. Realmente, o homem é fruto de suas escolhas. Mas os milagres que dela decorrem, são obras Deus.
É extremamente difícil falar em Deus, falar em milagres e discorrer sobre a fé. Principalmente na seara de uma sociedade pós-moderna onde o Panteísmo Psicodélico se funde a ortodoxia materialista. Corre-se sempre o risco de não ser politicamente correto. Mas, na altura desta jornada, esse é um risco que vale a pena.
Sai da cirurgia para encarar uma quimioterapia adjuvante de três meses. Nesse período de cura do corpo e de reflexão, vi que a minha estrada era a estrada de milhares de pessoas que sofriam com a mesma moléstia. Mas, no entanto, elas não tiveram o mesmo direito de escolha que tive. Não por culpa de Deus. Essa é uma relação entre os homens. De causa e de efeito.
A saúde pública sucateada. As filas nos hospitais públicos. As licitações fraudulentas para compra de medicamentos. A falta de gestão. A irresponsabilidade dos gestores. O descumprimento de ordens judiciais. A falta de UTI’s. As crianças do Hospital do Câncer condenadas à morte. O sofrimento das mães. Isso é culpa nossa. Deus não tem nada a ver com isso.
Algo precisa ser feito para que não impere o mandamento que Nietzsche nos legou: ”sejam insensíveis”. Não há mais tempo para experiências. Nosso destino nunca saiu de nossas mãos. E se não começarmos a olhar para a estrada dos outros como nossa, chegara o dia onde as multidões aglomeradas não nos deixarão andar. Por isso, se nesta estrada me virem andando de cabeça erguida e peito estufado, não julguem que a arrogância me dominou. O tempo urge. E eu, não sentei para chorar.