Aos 82 anos, Ziraldo festeja mais uma conquista em sua longa carreira: o mural de 32 metros de comprimento por seis metros de altura "A Santa Ceia", que pintou em 1967 em uma das paredes do Canecão, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, será restaurado pela UFRJ. A pintura, que levou quatro meses e meio para ficar pronta, estava empoeirada, suja e teve partes destruídas após várias reformas na casa de show.
Em entrevista ao G1 nesta quinta-feira (15), o artista contou que, apesar das dificuldades causadas pela dimensão do trabalho, realizar a pintura foi prazeroso. “Eu acabava de jantar e, por volta de 20h ou 21h, ia até lá [no Canecão] e ficava até as 3h. Mas eu recebia muitas visitas. Todas as pessoas que me visitavam davam uma pincelada”.
Apesar da participação de amigos em um detalhe ou outro da pintura, mesmo que de brincadeira, o traço é bem característico de Ziraldo. “Todas as linhas foram dadas por mim. É tipo história em quadrinho. Você faz a linha e pinta por dentro. Então não é só a pintura colorida. Tem um contorno. Todo esse contorno fui eu quem fiz”.
A restauração do painel será, em alguns pontos, uma reconstrução. Ziraldo acredita que o fato de ter sido pintada com tinta lavável pode ajudar no trabalho de limpeza das partes que foram preservadas. Mas, outras terão que ser novamente desenhadas. “Tem uma parte na qual precisaram fazer uma cozinha e colocaram azulejos em cima do mural. Vamos arrancar o azulejo e, evidentemente, não tem nada embaixo. É um afresco. Foi pintado direto na parede”, explicou o artista.
A dificuldade do trabalho não intimida o autor da obra, que garante estar disposto a desenhá-la novamente, como o original. “Eu vou desenhar de novo o que estava ali, que não tem nenhum sinal”.
Ainda assim, Ziraldo tem plena confiança na equipe de profissionais da UFRJ que está responsável pelo trabalho. “O restaurador vai ver quantas pinceladas eu dei, ele vai ver a textura da tinta. Cada linha desenhada será estudada antes de ser recuperada. Mas comigo vivo vai ficar mais fácil. Vai ser um trabalho fascinante”.
Retoques e pintura
Em outubro de 2010, após uma longa luta na justiça, a UFRJ recuperou o controle do Canecão, que está em um terreno da universidade. O local, que permaneceu alguns anos fechado, se tornará um centro cultural. Durante a recuperação da pintura, no local funcionará um laboratório público, onde alunos e professores da UFRJ trabalharão com a ajuda de Ziraldo. A ação integra o projeto UFRJ Carioca, criado pela instituição para comemorar os 450 anos da cidade do Rio de Janeiro.
“A gente tem uma parte do painel preservado, que só precisará passar por alguns retoques e por limpeza. Mas a gente tem uma parte que está escondida e a gente não sabe o que vai encontrar. Mas, a previsão é de que, até o final do ano, a parte central da pintura esteja entregue para a população”, afirmou Carlos Terra, diretor da Escola de Belas Artes da UFRJ, em entrevista à GloboNews.
Com o característico bom humor, Ziraldo prometeu que o trabalho de restauro terá muita alegria. “Eu quero transformar a restauração do mural na mesma festa, tal qual foi a pintura dele”.
Estilo de vida carioca
Ziraldo desmente a polêmica de que o mural retrate uma versão carioca da Santa Ceia, que rendeu críticas na época da ditadura militar de que a obra seria muito transgressora. Segundo o artista, a versão surgiu por causa da semelhança entre as posturas dos personagens retratados no desenho dele e de um gênio renascentista.
“Um pedaço do mural, que não é nem um quinto dele, tem um monte de gente em uma mesa grande comemorando. Mas eu nunca falei que era ceia. Eu apenas arrumei os convivas da mesma maneira que Leonardo da Vinci arrumou os apóstolos na mesa. Mas como era uma coisa muito impactante, ficaram chamando o mural de ‘Última ceia’. Mas não é. É o mural do Canecão”, explica o artista, complementando que a pintura nada mais é do que uma homenagem ao estilo carioca.
“Tem a Arca de Noé com os bichos, tem os Arcos da Lapa, tem a vista do Papa ao Rio de Janeiro. Tem as cariocas chegando para a festa, animadíssimas. Tem o cara celebrando na mesa de bar. Tem o sujeito de porre, tem o cara dando cachacinha para o santo. Tem toda uma visão brasileira sobre o ato de beber. Não tem ninguém comendo. Estão todos comemorando. Tem muitos brindes”, explica Ziraldo, que não mede palavras para falar como a notícia de que a obra será restaurada o deixou feliz.
“Para mim, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. É mais emocionante do que pintar o mural”.
Fonte: G1