Incoerentemente, a discussão sobre aborto no Brasil nunca se centrou no fato de que milhares de mulheres todos os anos enfrentam o dilema de continuar ou não uma gravidez não planejada e indesejada. Brasileiras que, em muitos casos, não têm as mínimas condições psicológicas e sociais para exercer a maternidade. Nesta semana, o Facebook foi palco para mais um debate simplista e acusatório da questão.
Uma ação, aparentemente espontânea, na rede social trouxe mães e gestantes publicando fotos de gravidez se posicionando contra o aborto, sob a hashtag ‘#desafiocontraoaborto’. Do mesmo modo que os participantes do Desafio do Balde, que chamaram atenção no ano passado para a doença esclerose lateral amiotrófica (ELA), essas mulheres desafiavam amigas a seguir a sua atitude e postar fotos de suas gestações.
Coincidência ou não, a campanha surgiu justamente no momento em que o notoriamente conservador deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), recém-eleito presidente da Câmara, afirmou ser radicalmente contra a votação de qualquer projeto que discuta a descriminalização do aborto. Entidades de direitos humanos criticaram a fala dele, considerada retrograda e pouco democrática.
Autora, ao lado do sociólogo Marcelo Medeiros, da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), a antropóloga Debora Diniz vê a ação na rede social como mais um exemplo de como o debate sobre questão não consegue avançar no Brasil, sempre esbarrando em maniqueísmos.
“É uma ação agressiva e vulgar, não pela exibição do corpo, mas o julgamento que faz das outras que não fizeram a mesma escolha. Além de falta de empatia por essas mulheres, é um discurso de raiva. Eu não diria que é uma campanha interessante, porque não tem nada de reconhecimento da experiência alheia. Mostra que estamos avançando cada vez menos na discussão do aborto”, lamenta Débora.
Feita em 2010, na Universidade de Brasília, em parceria com a organização ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), a pesquisa capitaneada por Débora e Medeiros aponta que no Brasil uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos de idade já recorreu aborto para interromper uma gravidez. Os números apresentados pelo PNA foram referenciados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Para Débora, a campanha ignora as razões de quem aborta. “É um debate raso no sentido que é feito por binarismo, como se tudo dependesse de ser a favor ou contra a um tema de oposições dramáticas. Um debate sério exige um aprofundamento maior, para entender quem são essas mulheres e por que elas recorrem ao aborto”, analisa a antropóloga.
No entanto, Debora vê com bons olhos a reação que o ‘#desafiocontraoaborto’ provocou na mesma rede social. Igualmente mães e também com imagens de suas barrigas de grávida à mostra, mulheres criaram o movimento ‘desafio você a pensar outra vez sobre o aborto’.
“Elas surgem subvertendo a ideia da mulher que aborta, essa que não mostra o rosto e não se aproxima do lugar do feminino. É um jeito de desafiar essa localização tradicional e enigmática que diz que as mulheres que são a favor do aborto não podem ser mães”, exalta Debora, percebendo na ação a possibilidade de uma discussão mais justa. "Trata-se da mesma imagem, de mulheres que ocupam o mesmo lugar social e também são boas mães, mas apoiam aquelas que abortam. É totalmente inesperado e provoca o debate.”
EM FAVOR DA LEGALIZAÇÃO
Com um texto em seu blog pessoal, a mãe e roteirista Renata Corrêa deu o start na reação à campanha contra o aborto. Ela desafiou as participantes a pensar questão sob outro ponto de vista. Em 2014, Renata lançou o documentário "Clandestinas", que retrata a vida de mulheres que abortam ilegalmente.
“Eu sou a favor da legalização do aborto e que ele seja feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A mulher deve ter todo o direito de escolher interromper uma gestação indesejada. Ninguém deveria ser obrigada a ser mãe, ou mesmo passar por uma gestação e puerpério (fase pós-parto) se esse não for o seu desejo”, argumenta Renata, em entrevista ao Delas.
A escritora defende uma legislação mais ampla sobre a interrupção da gravidez. “Hoje, no Brasil, o aborto só é legalizado em caso de risco de vida para mãe, feto anencéfalo e estupro. Eu acredito que o aborto deva ser legalizado universalmente para qualquer mulher que deseja interromper a gestação no primeiro trimestre”, defende Renata.
CONTRA LEGALIZAÇÃO
Vanessa Martini, do blog Mãezinha Vai com as Outras, tem um pensamento oposto ao de Renata. Ela inclusive participou do ‘#desafiocontraoaborto. Vanessa conta que aderiu a iniciativa sem grandes pretensões, após ser desafiada por uma amiga. “Apesar de ser um tema forte e digno de discussão, levei mais para o lado de recordar o barrigão e fazer do desafio um momento de interação entre amigos”, afirma.
Fonte: G1