Sob um calor de 34° típico de toda e qualquer 11h da manhã em Cuiabá, o caminhoneiro Vanderlei Ferrari, 59 anos, mantém-se afastado cerca de 600 metros do centro de um dos principais pontos de manifestação de sua categoria, na BR-163, entroncamento das saídas para Rondonópolis, Campo Grande e São Paulo. Olhos apertados pela luz, ele explica que está parado essencialmente porque não consegue mais, sequer, pagar a prestação de R$ 2.500 mensais de um de seus dois caminhões.
Era o final da manhã de terça-feira (29) e o movimento conhecido como Greve dos Caminhoneiros já atingia o nono dia em todo o país. Em Mato Grosso, cerca de 30 pontos ao longo das BR-364 e BR-163 foram bloqueados com a mobilização.
Filho de caminhoneiro, conhece seu ofício como poucos. Acostumado à complexa matemática de sobreviver sob o arrocho cada vez maior dos ganhos da profissão que o escolheu, “nasci dentro de um caminhão”, conta ao Circuito Mato Grosso que não havia opção a não ser o protesto, pois ao alto custo do litro do diesel uniu-se o baixo preço do frete, mais os "gastos absurdos" com pedágios, manutenção das máquinas, pneus, freios e suspensão, sempre arrebentados pelas “péssimas condições” das estradas brasileiras.
Ao decodificar as equações para fazer-nos entender que não foi sem motivo que deixaram boa parte da população sob o pavor do desabastecimento em praticamente todos os setores, conta com simplicidade quanto custa para ele honrar parte de suas operações.
“Pra você ter uma ideia, uma viagem de São Paulo a Santarém, são mais de 3.400 quilômetros, não paga uma prestação do caminhão. Além do litro do diesel, por volta dos R$ 4,17, são R$ 1.100 só de pedágio, cada pneu da carreta custa em média R$ 2 mil e não dá pra rodar mais de 100 mil km com eles. São 18. Como é que a conta fecha?”.
Com a pele vermelha, olhar e voz cansada, ele afirma com todas as letras que, pra piorar, pagar pedágio em Mato Grosso é para “rodar num mar de buracos sem acostamento”. Além disso, boa parte do trecho entre Cuiabá e Santarém, de 1.770 quilômetros, sequer é asfaltado. “É intercalado, às vezes tem 30 quilômetros de asfalto, depois outros 80 sem, outra hora são 100 de asfalto e 40 sem. E assim vamos indo”.
De acordo com ele, governo após governo, a profissão foi sendo espoliada. Fala com saudade de dez anos atrás. “Naquele tempo, de uma viagem dessas sobrava R$ 10 mil, contando os dois caminhões e tendo que dividir com o companheiro que dirige a outra carreta. Hoje, não sobra nem R$ 4 mil. Tinha que parar mesmo”. Faz questão, entretanto, de afirmar que nenhum caminhoneiro está feliz com a greve, pois caminhão parado significa, acima de tudo, prejuízo, especialmente para os autônomos. “Se não viajo, não ganho dinheiro. Nem pouco nem muito nem nada”.
Assim que o movimento terminar, para melhorar os rendimentos, a alternativa encontrada por ele e a esposa, Maria, 25 anos, é colocá-la para conduzir o outro caminhão da família Ferrari. “Estou fazendo a troca de categoria, mas ainda estou na D”, conta, sem disfarçar o orgulho de mesmo sendo mais jovem, estar quatro categorias de CNH acima da equipe de reportagem. “Já estou acostumada a viajar junto com ele, só vai ser diferente que ele vai estar em um caminhão e eu no outro”, projeta.
Entre o quiosque de lanches, refeições e bebidas onde estava o casal e o ponto de bloqueio propriamente dito, contamos no mínimo 600 caminhões parados. De todos os tipos. Baús, refrigerados, de carga seca, mas em sua maioria do tipo usado para transportar combustível, os chamados tanques. Somente no primeiro posto do Distrito Industrial, mais de 60 estavam estacionados.
Próximo ao ponto de parada, pelo menos 200 caminhões-tanque estão enfileirados numa pista contígua à BR, próximos às empresas do Distrito. Cerca de 200 metros à frente, chegamos à concentração dos caminhoneiros. Junto de oito policiais rodoviários federais e duas viaturas de giroflex ligado, cerca de 150 motoristas estão aglomerados sob uma barraca onde montaram uma pequena base. Lá há dois freezers grandes com água, bananas, maçãs. Sobre uma mesa, pães. Enquanto nos aproximamos, vemos carretas com cartazes e banners impressos com os dizeres “intervenção militar já”. Essa, aliás, era a frase mais repetida em para-brisas, no asfalto e em camisetas, além de “fora Temer” e “chega de políticos corruptos”.
Uns dois exibem camisetas verde e amarelo da seleção. Pequenas bandeiras do Brasil também. Em um dos caminhões, de frente pra base, uma faixa impressa em material de banner se destaca: há um brasão do Exército brasileiro e novamente a frase pedindo a volta dos militares ao poder.
Em meio ao burburinho das rodas de conversa, vários ouvem áudios de WhatsApp. É a forma de comunicação preferida. Todos desconfiam e desmentem a cobertura jornalística. “A Globo só mente”, “os jornalistas não entendem sequer o que nós estamos pedindo” e “esses jornalistas só sabem fazer fake news”, são as reclamações recorrentes.
Nesse clima, me apresento a Eliezer Mossoli, 30 anos, caminhoneiro há 18. “Comecei a dirigir caminhão com 12”, diz, com orgulho. Se desculpando por interromper a conversa a cada dois, três minutos para ouvir os áudios que o atualizam sobre a situação em Rondonópolis, “o ‘baguio’ tá ficando doido lá, bicho tá pegando”, ele discorre sobre o poder recém-descoberto pela categoria, critica os políticos, comemora a redução do preço do litro do diesel, mas avisa: não vão mais retroceder nem se contentar com o que foi conquistado até agora.
“Não queremos mais a redução só por 30, 60 dias, queremos definitivamente. Também temos carros e motos que nossas famílias usam e nós usamos quando estamos de folga, queremos a redução do preço dela também. E não vamos parar até tirar aquele cara de lá”, afirma, com convicção, sendo ‘aquele cara de lá’ o presidente Michel Temer.
Durante 15 minutos, ele discorre sobre como a classe não pode arrefecer a manifestação agora: “Se deixarmos, daqui a pouco eles aprovam uma lei lá e nunca mais poderemos parar (a corrupção no país)”.
Mossoli só fica mais comedido quando perguntado se apoia a intervenção militar. “Eu não apoio nada, mas você sabe como funciona aquele sistema político lá, né? Qual é o nome mesmo”? “Democracia”, respondo. “Isso, só que na democracia quem manda é a maioria, e a maioria não tem mandado é nada no Brasil faz tempo, porque a maioria é de trabalhador, que ganha cada vez menos, feito nós”. Insisto então se ele está querendo a volta dos militares, ele fica um pouco tenso, mas lembra que gosta do direito de ir e vir e de fazer manifestações e diz não saber se poderia com militares no poder.
Somos interrompidos pelo início dos discursos. Dois homens sobem nos freezers e começam a discorrer sobre os rumos a serem tomados. Ambos falam sobre o perigo de retroceder e “perder tudo que conquistaram” até agora e sobre a relação com a PRF ali presente. “Ninguém é obrigado a continuar parado, se quiserem seguir, é só entrar no caminhão e ir, tá livre”, disse um dos caminhoneiros, que preferiu não se identificar.
Logo na sequência, outro lembrou que haveria a garantia da escolta para quem quisesse ir embora e abandonar o movimento; é interrompido por um colega, que grita: “Conquistamos muita coisa sim, mas é praticamente nada perto do que podemos conseguir ainda. Hoje falaram que estamos parados há nove dias. Eu aguento ficar 90, se for preciso”. É ovacionado por gritos e palmas.
Carros da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Mato Grosso começam a chegar na área do bloqueio de Cuiabá. Os policiais contam que um grupo de 50 caminhoneiros, concentrados no bloqueio da BR-364, próximo ao município de Rondonópolis (distante cerca de 210 km de Cuiabá), se prepara para a desmobilização da greve ainda nesta terça-feira (29). Eles aderiram a uma ação proposta pela PRF Mato Grosso, que garantiu a escolta dos caminhões até Cuiabá.
No entanto, o movimento não deve ser seguido pelos demais manifestantes. No bloqueio de Cuiabá, por exemplo, os motoristas já sinalizaram que não irão se desmobilizar. Durante a tarde de terça, o Exército usou de bombas de gás lacrimogêneo e bala de borracha para dispersar os manifestantes. Porém ao menos ali, a paralisação parece continuar.
Comércio é o que mais sofre com a greve
Quem não conseguia disfarçar o descontentamento com a parada dos caminhoneiros era o dono do misto de restaurante e lanchonete à beira da BR 163/364, José Aparecido, 43 anos. Ele explica à reportagem que as vendas caíram mais de 85% nesses nove dias de paralisação.
Acostumado a tocar o pequeno comércio, nas imediações de um posto, com várias empresas do Distrito Industrial ao fundo, contou que praticamente ninguém tem ido até lá comer seus salgados, tomar caldo de cana, água, suco e muito menos almoçar.
“Nosso movimento é de caminhoneiros em viagem, né? Parou tudo. Apoio sim as reivindicações deles, mas a paradeira está me deixando preocupado. Desde que abri há três anos, estou acostumado a vender R$ 1.200, em média. Nos últimos dias, não estou vendendo nem R$ 200. Caiu muito”, diz, sem conseguir esconder a irritação.
A esposa se junta à conversa timidamente, mas não fala nada, só balança a cabeça. Tem veemência especial e se manifesta repetindo os finais das frases quando o marido diz, irritado, “eu não sei o que vai acontecer com os caminhoneiros, mas com os políticos, com o presidente, eu tenho certeza: vai tudo acabar em pizza”, diz.
A greve que parou o Brasil
O movimento nacional de greve dos caminhoneiros começou no dia 21 de maio, após mais um aumento no preço do combustível anunciado pela estatal que monopoliza o refino e a venda de derivados de petróleo no Brasil, a Petrobras.
Em Mato Grosso, o Sindicato das Empresas de Cargas de Mato Grosso (Sindmat) emitiu nota de apoio à greve que chegou a ser considerada locaute inicialmente, ou seja, um movimento arquitetado pelos empresários, mas logo ganhou adesão de caminhoneiros autônomos também. No documento, o sindicato considerou que o aumento no preço dos combustíveis era "abusivo e prejudicava toda a sociedade" e destacou que a população não deveria ser obrigada a "pagar o custo da roubalheira", se referindo aos desfalques na estatal.
Após contínuo desabastecimento de supermercados e postos de gasolina, a pressão sobre o governo aumentou. Para tentar conter a greve, no domingo (27), o presidente Michel Temer anunciou medidas. Entre elas o desconto de R$ 0,46 no litro do diesel por dois meses.
Temer também prometeu cortar tributos federais (Cide e PIS/Cofins) sobre o diesel, o que resulta na baixa de R$ 0,16 por litro. Passados dois meses, os reajustes no valor do combustível podem ser feitos a cada 30 dias.
O ministro Carlos Marun (MDB/MS) afirmou contar com o "patriotismo" dos donos de postos para que a redução do preço do diesel chegue às bombas de combustível. A federação dos postos de combustível (Fecombustíveis) disse que vai repassar a redução ao consumidor. Caberá ao Procon fiscalizar.
Porém, tudo ainda é incerto, pois a redução de impostos ainda depende de aprovação no Congresso Nacional. O fim da cobrança do PIS/Cofins sobre o diesel já foi aprovado pela Câmara e seguiu para avaliação no Senado, que deu urgência ao projeto. Até o fechamento desta edição, a medida ainda não estava aprovada.
Outra promessa feita aos grevistas foi a isenção de pedágio para eixos suspensos. A medida faz os caminhões vazios, que costumam rodar com ao menos um eixo levantado, para evitar desgaste dos pneus, pagarem menos pedágio, já que a cobrança é feita por eixo.
Outra medida provisória publicada no último domingo diz que 30% dos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), uma empresa estatal vinculada ao Ministério da Agricultura que atua em programas sociais, devem ser feitos por caminhoneiros autônomos. A empresa lançou uma chamada pública nesta segunda-feira (28) para contratar cooperativas de caminhoneiros autônomos, um primeiro passo para a medida começar a ser praticada.
Em Mato Grosso, as negociações com o governador Pedro Taques (PSDB) não evoluíram. Taques foi um dos governadores mais inflexíveis do país nas negociações com os grevistas. Ele afirmou que a greve era um problema do presidente da República. “A União não pode jogar a responsabilidade dela sobre os ombros dos Estados”, declarou. E rejeitou reduzir o Imposto sobre Circulação Mercadorias e Serviços (ICMS) do combustível, como o estado do Rio de Janeiro fez, e também a eventual redução da participação dos estados na Contribuição sobre Intervenção de Domínio Econômico (Cide). “Nós do Brasil Central estamos marcando uma reunião com presidente da República para levar a nossa posição”, disse Taques.