Morre a primeira banqueteira de Cuiabá
Faleceu esta madrugada a primeira banqueteira de Cuiabá, Elza Fortunato Biancardini. O velório será na Capela Jardins, no Bairro Bandeirantes, a partir das 11h.
Elza nasceu no dia 03 de outubro de 1929, filha de Antônio Fortunato e Maria Bonaventura Fortunato. Foi uma mulher que sempre esteve à frente de sua época, simples, amável e compenetrada em sua magnífica arte.
Em sua homenagem, o Circuito Mato Grosso reproduz entrevista de Elza Biancardini ao Diário de Cuiabá em 2010, onde ela fala de sua paixa pela culinária, alegrias e tristezas.
DC Ilustrado: Como foram os seus estudos? ELZA: Iniciei a estudar na tradicional Escola Modelo Barão de Melgaço e minha primeira professora foi Iris Proença, competentíssima mestre da rede estadual de ensino.
Depois, por dois anos, fui estudar no Internato do Asilo Santa Rita e ali aprendi a bordar.
DC Ilustrado: Por que só por dois anos?
ELZA: Tive que deixar os estudos para ajudar a família, na condição de filha mais velha. A tradição mandava que os filhos, notadamente os mais velhos, arregaçassem as mangas mais cedo e somassem com os pais na manutenção da casa e criação dos filhos.
Italiana irriquieta, trabalhadora que só ela, D. Maria, mãe de Elza, se virava de todos os modos para não deixar a peteca cair. Na casa da Travessa da Justiça, no Campo D’Ourique, plantava-se de tudo: coentro, cebolinha, alface, samambaia, rosas etc. para vender aos cativos fregueses, aumentando o orçamento doméstico.
DC Ilustrado: E os bordados?
ELZA: Tudo sem prejuízo dos bordados. Ajudava mamãe na horta, no fogão, na administração da casa e ainda bordava incansavelmente.
DC Ilustrado: O ofício de bordadeira tinha um bom retorno pecuniário?
ELZA: Mais ou menos. Eu vendia bem mas queria expandir-me no ofício.
Para minha sorte, um bordado meu caiu nas mãos do sr. Alberto Aguiar, famoso comerciante cuiabano. Ele me procurou e disse que queria me ajudar. Então ofereceu-me as suas vitrines na Casa Alberto para que eu pudesse expor meus bordados.
DC Ilustrado: Aí aconteceu o sucesso.
ELZA: Com certeza. Passei a ser procurada por dezenas de novas freguesas. Inclusive as fantasias de carnaval do Bloco Sempre Vivinha, do sr. Nhozinho, passei a bordar com exclusividade. De enxoval a carnaval, bordava para todo mundo que me procurava e fui tendo projeção na arte. Confesso que bordo e bordo muito bem.
DC Ilustrado: E a culinária?
ELZA: Mamãe fazia pratos saborosos. Ela era muito requisitada para pequenas encomendas e eu a ajudava. Um dia, próximo do fim do ano, recebi um telefonema de Terezinha Olavarria, mulher do então presidente do Clube Dom Bosco. Ela me dizia da beleza de festa que faria no reveillon mas estava com um problema: precisava de umas dez tortas que tivessem o gosto das tortas de Elza Biancardini. Então eu disse a ela: eu topo o desafio. E fiz a encomenda com todo o esmero e deixei de lado agulhas e linhas e com a cara e a coragem virei banqueteira. A oportunidade surgiu e era preciso agarrá-la.
DC ilustrado: Depois desse 31 de dezembro tudo foi diferente?
ELZA: Realmente, ganhei fama e fiz todas as grandes festas a partir daí. Fui a Leilinha Malouf da época. Não havia concorrência para mim. Tive a honra de ser escolhida para fazer a recepção ao Papa João Paulo II, em sua visita a Cuiabá. Festas de 15 anos, posses de prefeitos e governadores, festas de presidentes da República, confraternizações anuais, encerramentos de cursos, tudo tinha a assinatura do Bufê Elza Fortunato Biancardini.
DC Ilustrado: Alguma saia justa?
ELZA: Olha, na posse de Julio Campos, a Profª Isabel encomendou-me um jantar para 500 pessoas e exigiu-me tudo de prata. Não tive escolha: era pegar ou largar. Como nessa época Cuiabá não dispunha de empresa com o cacife para um jantar desse naipe, botei o meu filho Jean no avião e ele alugou tudo em São Paulo: pratos, talheres, baixelas etc. Mas eu cumpri o contrato e fiz a festa. Um luxo só! Na vida a gente tem que ousar, não é mesmo? Ou enfrenta ou dá o lugar para outro.
DC Ilustrado: E os paladares?
ELZA: Cheguei a conhecer o gosto de quase todas as autoridades e damas famosas. A D. Maria Aparecida, por exemplo, comia peixe e bacalhau só da minha feitoria. Todas as vezes que a May encomendava-me banquete para o Dr. Pedro Pedrossian ela já dizia: “ não esqueça da comida de D. Aparecida”.
DC Ilustrado: E onde a sra. encontrava as receitas para todos esses banquetes?
ELZA: Olha, eu vou confessar uma coisa com total exclusividade para o Diário de Cuiabá: Eu nunca copiei receita de ninguém. Tudo era da minha cabeça. Até os arranjos das mesas eu os criava sem pedir ajuda e sem copiar de ninguém. Estou confessando isso agora porque já estou velha e ninguém vai me chamar de metida, vaidosa ou coisa pior. Aliás, fui certa feita procurar um aperfeiçoamento em São Paulo e o maitre me disse : “ A sra. não precisa de ensinamento de ninguém. A sra. é mestra na arte”. Fiquei orgulhosíssima com o elogio mas nunca pude contar isso a ninguém. Tem hora pra tudo. Agora que não estou mais na concorrência posso falar, não é?
DC Ilustrado: A sra. é uma pessoa alegre, passa a impressão de estar sempre de bem com a vida.
ELZA: É, mais ou menos. Mas já sofri muito. Por exemplo, na morte de minha irmã Carmelita sofri muito. E volta a se emocionar. (Conta que Carmelita morreu aos 20 anos, em plena juventude, de uma doença cardíaca que, hoje, seria perfeita e facilmente curável).
O Fioravanti, meu irmão, foi estudar Farmácia impulsionado por essa perda prematura.
DC Ilustrado: E os filhos?
ELZA: Tenho dois filhos maravilhosos que não me dão uma gota de preocupação: o Jean e a Beatriz Helena.
DC Ilustrado: E o marido?
ELZA: Fui casada 57 anos com o Joseph Biancardini morto em 2008.
Zezinho, como era conhecido, tinha um prazer na vida que era a pescaria. E eu desfilar na Mangueira em todos os carnavais cariocas. Nós nos respeitávamos muito. Nunca houve mulher nas pescarias do meu ex-marido e nem homens nos meus carnavais. Era prazer, gosto, vontade de fazer aquilo que trazia felicidade para cada um de nós.
DC Ilustrado: E quem deu continuidade à profissão de banqueteira?
ELZA: Dentre os meus irmãos apenas Zelito ainda fabrica massas (macarrão, espaguete, canelone) para uma freguesia fiel.
Do lado de meus filhos o Jean pilota o Restaurante Regionalíssimo mas não quis mexer com Bufê.
DC Ilustrado: Agora tudo parou, ficaram apenas as lembranças?
ELZA: Não, meu filho. Como toda boa carnavalesca, parodiando a marchinha, devo dizer que “quem fica parado é poste”.
Em 1 993 fui vitimada por um AVC (Acidente Vascular Cerebral) no Rio de Janeiro que me impediu de desfilar. Perdi parte dos movimentos, mas parar, não paro. Acredito que se parar morro. Sendo assim, ainda hoje sou em quem faço os doces e tortas do Restaurante Regionalíssimo. De vez em quando arrisco um prato. Tudo criação minha. Não há receita que me faça copiar. Crio doces e tortas e, graças a Deus, ainda agrado.
DC Ilustrado: Alguma tristeza?
ELZA: As mortes de minha irmã, dos meus pais e do meu marido.
DC Ilustrado: E a maior alegria.
ELZA: Foi o grande bufê que eu construí com muito trabalho e que ficou cada vez melhor.
DC Ilustrado: Hoje é melhor que ontem?
ELZA: Para viver, acho que hoje é melhor que ontem, principalmente pela evolução da ciência.
Conclusão:
Se um cozinheiro qualquer, mestre ou aprendiz, afirmar-nos que não consulta receitas para produzir seus acepipes fatalmente a nossa crença será abalada.
Mas quando é Elza Fortunato Biancardini quem nos diz que nunca fez consultas para produzir aqueles banquetes inesquecíveis somos obrigados a acreditar.
Uma senhora que foi a maior banqueteira de Cuiabá, 80 anos de vida, sobrevivente de um AVC, viúva e sem filhos para criar, da altura de suas simplicidade e meiguice não possui nenhum motivo para mentir. Nem se atreveria de criá-lo tal a sua respeitabilidade.
Além de não copiar receitas também não copiava arranjos das mesas e dos pratos. Tudo criação dela, idéias dela e vontade pessoal de encontrar o saboroso e o bonito para enfeitar a comida que fazia ( e faz).
Com todo respeito à inteligência de D. Elza, nessa sua criatividade deve ter ( e com certeza tem) um pouco da sabedoria que só a cabeça de pacu é capaz de produzir.
Para Cuiabá fica a honra de ter entre seus filhos a banqueteira que nunca copiou receita de ninguém.
Também depois de ficarmos isolados e abandonados por mais de 200 anos e chegarmos onde chegamos fica fácil proclamar que aqui viveu e vive um povo de fibra, raça e criatividade e que venceu graças a isso.