Estou enrolando, pra variar. Se tenho um motivo, o prazer de abrir um novo caderninho para rabiscar as crônicas do Sem Fim, outras razões me levam a procurar uma rota de fuga da atividade e da realidade.
A troca de caderninho é a passagem que os leitores fiéis já a reconhecem de outras leituras. Acontece graças ao costume de escrevinhar textos que começou a surgir nas areias da praia do Leme, sempre às sextas, há uns 20 anos atrás). A “Ponta do Leme” foi a primeira série que surgiu, seguida de outras tantas definidas, inicialmente, geograficamente. O “Parador Cuyabano”, a “Fronteira Oeste do Sul” e a sempre abastecida “É Carnaval” estão sendo chuleadas há décadas (ui).
Raramente troquei o caderninho pelo teclado do computador. Não é a mesma coisa. O pensamento flui numa velocidade diferente. Daí eles vão se acumulando, ocupando um espaço considerável na estante. E sabe que me apego ao caderno da vez? Quando vejo que estão chegando ao fim a letra vai diminuindo na intenção de prolongar nossa convivência. Já houve caso do vazio ser tão sentido que falhei na periodicidade evitando a realidade da troca de companheiro. O inevitável a não ser no dia que encerrar a saga do Sem Fim.
Trocar o caderninho demanda adaptações. Passei por vários modelos e formatos. Uns foram espirais, outros não. Sempre capa dura. Maiores ou menores, mas nunca grandes ou pesados demais. Têm que caber nas bolsas. Uns tinham pautas, outros não. Nesses, as linhas imaginárias formavam muitas curvas e poucas retas.
A única coisa que evito na escolha dos caderninhos é que as folhas sejam porosas, que os rabiscos vazem pra a página de trás. Sei a dificuldade que é decifrar o que escrevi na hora de preparar o material para enviá-lo aos parceiros que publicam as crônicas.
Apesar da angústia da busca do caderninho perfeito a chegada do novo companheiro é sempre um prazer. Por isso procuro inaugurá-lo com palavras e pensamentos otimistas e de alegria quando dá.
Esse é um caso que, infelizmente, não dá. Considere as razões que citei no início dessa conversa e as intenções do Sem Fim de manter um vínculo com a realidade.
Ela está horrorosa e piorou mais um pouco com as más intenções eleitoreiras do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Em busca de votos para fazer seu sucessor no comando da casa, ele cravou um regime de urgência, votado no tempo recorde de 24 segundos, no projeto de lei 1904 do deputado Sóstenes Cavalcante, do PL carioca, que prevê pena de 20 anos para a mulher que fizer aborto após 22 semanas de gestação, nos casos previstos em lei.
Se vamos dar nome aos bois, vale citar que o primeiro da lista dos fundamentalistas que aprovaram a urgência maladeta é o do candidato a prefeito de Cuiabá, Abílio Brunini. Como Deus está vendo o tamanho dessa aberração espero que a manobra eleitoreira seja a pá de cal na sua pretensão.
Certamente, nenhum dos aqui citados imaginaram o tamanho da reação que a proposta esdrúxula geraria. O estuprador, um dos casos em que o aborto é permitido por lei, é condenado a 10 anos. A estuprada a 20! Foi um sacode na opinião pública. O mote “Criança não é mãe” virou um efeito cascata bombado, inclusive, pelas escolas de samba cariocas. Tão forte como a informação que a cada 8 minutos uma mulher é estuprada, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher.
E lá se foram as questões que deveriam estar sendo objetos de análise parlamentar enquanto, mais uma vez, a sociedade é jogada numa cruzada moral e ideológica em que o que menos importa é a nossa decisão pessoal, a das mulheres, atingidas pelos rigores da lei xiita.
Pra mim, danem-se as leis. Sempre foi assim. Meu corpo, minhas regras. Na vida e aqui no novo caderninho fica o registro: NÃO AO PL 1904!
Boa sorte aos eleitores de Cuiabá e aos do Rio de Janeiro também. O Delegado Ramagem, candidato do PL a prefeito de lá, foi outro que votou pela urgência do famigerado projeto.
A campanha eleitoral já começou, infelizmente, com pautas que não dizem respeito às que deveriam ser a maiores preocupações dos futuros prefeitos, suas cidades e o bem estar das populações. A sociedade não merece regredir. Escolham com cuidado seus candidatos, eleitores.
O que for decidido irá para o caderno da História da capital mato-grossense, da Cidade Maravilhosa e é sua responsabilidade também!
*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Crônica da série “Parador Cuyabano” do SEM FIM… delcueto.wordpress.com—
Valéria del Cueto
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