A distância da família e dos amigos, ambientes inóspitos, convivência com a miséria e doenças, condições desumanas fazem parte do cotidiano dos milhares de profissionais que atuam nas Missões de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) em diversos lugares do mundo. Atualmente, um grupo formado por policiais militares de vários estados do Brasil está em uma dessas missões, no Sudão do Sul, o mais novo país do mundo com apenas oito anos de criação. O comando do contingente policial brasileiro nesse país está sob a responsabilidade do mato-grossense Alessandro Souza Soares, tenente-coronel da Polícia Militar lotado na Secretaria de Segurança Pública, que desde agosto de 2018 juntou-se aos profissionais no continente africano, começando o trabalho pela missão na Guiné Bissau.
A ONU comemora o dia internacional dos soldados da paz, os 'Peacekeepers', em 29 de maio instituído para homenagear aqueles que estão em atuação e os mais de 3.800 capacetes-azuis que perderam suas vidas servindo a bandeira da organização desde 1948. O tenente-coronel Alessandro conta que mesmo diante de toda a dificuldade em servir a população nesses países, a missão é uma oportunidade para aprender as melhores práticas e técnicas policiais do mundo. “A ONU adota inúmeros procedimentos operacionais para os mais diferentes cenários na promoção e consolidação da paz. A troca de experiência com vários policiais do mundo que vêm de países como Noruega, Suécia, Portugal, Turquia, China, Indonésia, entre outros, nos faz refletir sobre a tendência internacional do policiamento, sobre o policiamento comunitário, respostas às chamadas policiais e suas tecnologias aplicadas para a mediação e resolução dos conflitos na sociedade. E nesse contexto, as polícias brasileiras, especialmente a de Mato Grosso, podem muito contribuir”, destaca o oficial.
Seleção da ONU
Para integrar as missões de paz, o policial de Mato Grosso diz que o caminho não foi fácil ao passar por entrevistas rigorosas, mas a vocação fala mais alto. “Os critérios para o processo seletivo e os requisitos que temos que preencher são dos mais elevados padrões internacionais. A ONU tem seus quadros os melhores profissionais do mundo e experts em suas áreas de atuação”, diz ele, acrescentando que a seleção, com provas teóricas e práticas são realizadas em quatro dias pelo Exército Brasileiro e, ao chegar na área da missão, os profissionais são reavaliados para validar a qualidade.
“Na condição de policial militar, sinto-me muito feliz e honrado por poder representar o meu país, Mato Grosso e Polícia Militar nessas duas Missões de Paz das Nações Unidas em Guiné-Bissau e no Sudão do Sul”, frisa Alessandro.
Desafios e a saudade
Num cenário de hostilidades, guerra, instabilidade política e falta de condições básicas de saúde, higiene e infraestrutura, a capacidade de resiliência dos profissionais é testada a todo momento. “Tenho observado na missão que qualquer dificuldade que podemos encontrar como seres humanos pode ser superada. Em Guiné-Bissau por exemplo, aprendi muito com o povo e os policiais locais, que não tem condições mínimas de trabalho. Eles não têm uniformes, calçados, material de trabalho. O salário médio da população, incluindo os policiais é de 30 mil francos CFA, equivalente a pouco mais de 50 dólares americanos por mês. O Brasil tem uma embaixada e apoia o país por ser membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e desenvolve ações positivas no país, apesar de toda dificuldade que a Guiné-Bissau tem para se estabilizar politicamente”, relata o tenente-coronel.
Em fevereiro deste ano, o oficial de Mato Grosso foi realocado para a segunda missão, a UNMISS no Sudão do Sul, pequeno país no nordeste africano banhado pelo rio Nilo que tem uma das maiores taxas de mortalidade infantil e de analfabetismo entre a população jovem no mundo, apesar de possuir grandes reservas de petróleo. No país, Alessandro assumiu o comando do contingente brasileiro formado por militares das polícias do Rio Grande do Norte, Maranhão, Rio de Janeiro, Alagoas, São Paulo e Minas Gerais, cujo principal trabalho é a proteção humanitária e a promoção de um ambiente para desenvolvimento e a paz sustentáveis.
“A Missão de Paz no Sudão do Sul é mais robusta e demanda grande capacidade logística, bélica, treinamento e proatividade para a proteção das comunidades étnicas mais vulneráveis e que foram perseguidas por muitos anos, em guerras civis que resultaram no deslocamento de 4 milhões de pessoas e mortes de outros 2 milhões”, conta o tenente-coronel, afirmando ainda que mesmo diante do cenário de guerra civil e medo, os profissionais sentem-se honrados e comprometidos em trabalhar na proteção das pessoas.
Ainda que a tecnologia no Sudão do Sul seja precária, é por meio da internet que o militar mata as saudades da família, especialmente das duas filhas. “O maior desafio para mim foi ficar longe da família e especialmente das minhas filhas. Nesse ponto a tecnologia ajuda muito, pois mesmo com uma velocidade de internet baixa e que na maioria das vezes está fora do ar, ainda conseguimos trocar mensagens, mesmo que demore mais de uma hora para ser enviada”, recorda ele.
Além disso, outra dificuldade é enfrentar a falta de infraestrutura, saneamento básico e acesso à saúde. Nas duas missões, doenças como malária, cólera, febre tifoide e febre amarela são prevalentes, além do risco do ebola, doença em surto na República Democrática do Congo, país vizinho ao Sudão do Sul.
“Mas a gratificação e a alegria vêm quando você consegue cumprir a missão com sucesso. O sentimento positivo de bem representar o seu país é imensurável. Essas forças nos motivam a perseverar e a buscar nossa própria superação a cada dia vivido”, finaliza o militar de Mato Grosso.
Missões de Paz
Atualmente, existem 14 missões de paz em quatro continentes, sendo que oito reúnem mais de 90% dos trabalhadores das Forças de Paz — em Abyei e Dafur (Sudão), República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Haiti, Líbano, Mali e Sudão do Sul.
A primeira missão de paz foi estabelecida em 29 de maio de 1948, quando o Conselho de Segurança da ONU autorizou o deslocamento de um pequeno número de observadores militares para o Oriente Médio com o objetivo de monitorar o acordo de armistício entre Israel e países árabes. Desde então, mais de 1 milhão de homens e mulheres já serviram em 72 missões de paz, protegendo os mais vulneráveis e salvando vidas.