Classudo e viril em campo, o ex-zagueiro francês Thuram continua assim fora das quatro linhas. Em entrevista exclusiva ao programa Planeta SporTV, o jogador "foi na canela" de Pelé. Por achar que o Rei nunca participou do combate ao racismo, luta que trava desde que pendurou as chuteiras, classificou o comportamento de egoísta. Consultada depois da exibição da reportagem, a assessoria do brasileiro diz que nada tem a comentar.
A verdade é que Pelé jamais se posicionou. Ele jamais se posicionou sobre a problemática do racismo no Brasil
– E, portanto, ele é alguém que poderia ter feito avançar as coisas. Mas, para se posicionar e melhorar as coisas, eu acho que é preciso gostar das pessoas.
Eu não conheço Pelé, mas eu acho que é preciso superar um certo egoísmo
– E, pode ser que Pelé não tenha essa grandeza da alma, porque, efetivamente, se você vir a imagem que ele tem no mundo, eu acho que ele deveria ter feito outras coisas – disse Thuram.
que cria maneiras para impedir o crescimento do preconceito, o francês tem plena consciência de que sua voz chegaria em alto e bom som ao Brasil. E não poupou o jogador mais representativo da cultura nacional.
Eu continuo convencido que no fim da sua vida vai ser algo que ele se arrependerá
– Mais uma vez, eu acho que a partir do momento que você é uma pessoa negra e que você sabe que no seu país existe racismo, e que você está em uma situação que permite fazer avançar as coisas, eu acho que, um dia ou outro, você vai se arrepender. Porque, de fato, se nós servimos para algo, cada um de nós, é para melhorar o futuro, a fazer uma sociedade mais justa – disse Thuram.
O zagueiro deixou sua mensagem do que deveria significar para todos a luta contra o racismo.
– Acho que não tem combate mais bonito, não importa a cor da pessoa, não importa o sexo, ou a religião… Eu acho que, se temos uma responsabilidade, é tornar a sociedade mais justa.
Confira outros trechos da entrevista com o pensamento de Thuram sobre o combate ao racismo:
Como surgiu a ideia da Fundação? Um sonho para você ou é uma necessidade?
– Um sonho, eu diria não. Na verdade, a Fundação nasceu porque é a história da minha vida. Eu nasci em Guadalupe, eu cheguei aqui na França aos nove anos e digo sempre que eu virei negro aos nove anos. Porque a gente se torna negro.
É o olhar dos outros que nos diz: “Ah, você é negro”
– Mas, quando as pessoas brancas me dizem que sou negro, eles me dizem nesse momento também que eu sou diferente e inferior a eles. E, na verdade, eu sempre tentei entender de onde vem essa ideia de complexo de superioridade que as pessoas brancas podem ter sobre as pessoas negras. Eu compreendi através de leituras, por pessoas que encontrei que me ajudaram a entender que o racismo era algo cultural e ligado à história. E é por isso que criei essa fundação.
Como funciona a fundação e qual a importância para as próximas gerações?
– A fundação é, antes de tudo, um conceito científico, que tem os estudiosos, que trabalham comigo e me abastecem. E nós estamos presentes nas escolas para discutir com as crianças, exposições em museus, livros… A ideia é questionar o imaginário coletivo para dizer aos jovens: "Vocês não percebem, mas o racismo não é natural".
Uma criança não nasce racista, ele se torna.
– E, na verdade, é na cultura, na história contada. Por exemplo, Cristóvão Colombo. Dizem quase no mundo inteiro, e talvez no Brasil também, que Cristóvão Colombo descobriu a América. E eu digo às crianças para imaginar que estamos em uma sala e que, de repente, alguém abre a porta e diz: "Eu descobri a sala". Isso está certo? As crianças dizem "não". Eu pergunto: “Por que?”. E eles me dizem que é porque eles já estão na sala. Então, eu digo, é isso: Colombo chegou às Américas e tínhamos milhões de nativos, porque a história conta que ele descobriu a América?
– Na verdade, muitas vezes na história contada está inserida a superioridade europeia. A construção da superioridade das pessoas brancas. E é por isso que se deve ter muita atenção com a história. A mesma coisa de quando falamos do sexismo, as relações entre os homens e as mulheres. Não percebemos que nossa cultura se construiu pela dominação dos homens sobre as mulheres. E está aí porque ainda hoje existe esse domínio.
Você acredita que hoje o melhor caminho para combater o racismo é a educação e o esporte?
– A educação é a primeira arma. Porque você não pode ultrapassar uma situação que você não compreende. A educação é dar compreensão aos jovens como funciona o racismo, porque o racismo existe na nossa sociedade, porque a homofobia existe na nossa sociedade.
A homofobia, por exemplo, é preciso explicar aos jovens, que muitas vezes é ligada à nossas religiões?
– São nossas crenças que nos levam a rejeitar o homossexualismo. Às vezes, os jovens não entendem isso. Assim, se você quiser falar de sexismo, você olha a lei e você vai ver que não faz muito tempo que as mulheres têm direito ao voto. E isso não importa em que país. Quando falamos do racismo em razão da cor da pele, eu penso, como francês, que você deve conhecer o "code noir".
A maioria dos jovens nunca ouviram falar no “code noir”
– Ele é essencial para compreender o racismo. Foi algo instaurado em 1685 e terminou em 1848. Por mais de 150 anos existiu um código, como o código civil, que diz que as pessoas de pele negra não são seres humanos, eles são "bens móveis".
– Se você não entender isso, você não consegue entender a mentalidade. E você não entende que você e eu somos frutos do passado. Você não entende que cada um de nós tem preconceitos.
Porque muitas vezes as pessoas têm vergonha dos seus preconceitos e acabam acreditando que "é assim"
– Não, não é assim. Se existe uma tradição, por isso elas devem ser questionadas, a tradição é que eu me comporto de uma maneira com certas pessoas. Por tradição, a mulher deve fazer isso e o homem aquilo. Mas, se tentarmos entender as tradições, nós vemos que existe uma dominação do homem sobre a mulher, como existe uma dominação de pensamento de pessoas brancas em relação às pessoas negras. Quer dizer que é tão enraizado no pensamento que, às vezes, as pessoas têm atitudes racistas sem saber que estão tendo.
O que você acha da postura da Fifa em relação ao racismo?
– Eu acho que é necessário ser ainda mais duro na resposta dada, quando ocorre um ato de racismo. E também sensibilizar as pessoas que não são atingidas pelo racismo.
Eu continuo convencido que as pessoas que trabalham envolvidas com racismo na Fifa são pessoas que são muito distantes da experiência, vivência, do racismo
– Portanto, não entendem a que ponto é uma violência. E também existe a realidade, que o futebol é um negócio. Dessa forma, não se pode dar uma resposta tão forte porque dar uma resposta forte é também colocar em perigo o "negócio futebol". Eu acho que as pessoas que não são atingidas por racismo durante uma partida de futebol são esses os jogadores que deveriam deixar o campo. Eu estou convencido que, se todos os jogadores, falando dos brancos que não sofrem racismo, porque em geral são os jogadores negros, deixassem o campo, eu acho que as coisas evoluiriam muito rapidamente. Mas, muitas vezes, o árbitro faz como se não tivesse entendido, e alguns jogadores fazem como se também não tivessem entendido, e a partida continua.
O que achou da reação de Daniel Alves na época do Barcelona, quando comeu uma banana atirada no campo?
– Cada um de nós, quando sofre um ato de racismo, um ato racista, nós não sabemos como esse problema será resolvido. O que Daniel Alves fez foi algo muito interessante. Porque, na verdade, ele sofre um ato de racismo, e ele, que sofre o ato, é que deve encontrar a solução. Porque ele está só dentro de campo. Portanto, tem o árbitro, os outros jogadores… E temos a impressão que só ele viu a banana. E pensamos, essa banana, o que ele faz com ela? Ele decidiu comer. Eu acho que não deveria ser ele a achar a solução. Neste momento, não é a pessoa que sofre a violência que deve se defender sozinha.
Eu gostaria que tivesse sido o árbitro que interviesse e que os outros jogadores interviessem para mostrar que esse ato não é aceito dentro de campo
Mas Daniel Alves resolveu o problema, ele comeu a banana, e a partida continuou. É essa a hipocrisia. Porque o jogo tem que continuar. E eu acho que, se quisermos mudar as coisas, é preciso ter coragem para que o jogo pare para gerar reflexão.
Os árbitros têm parcela de culpa?
– Eu acho que para acabar com isso é preciso de atos fortes. Efetivamente, os árbitros não param a partida. O presidente da Fifa orientou parar a partida, mas talvez seja necessário punir os árbitros que não param a partida. E, no momento, não é o caso.
O árbitro diz sempre que não escutou
– Portanto, vemos sempre os jogadores que vão falar com o árbitro. Eu acho que deveria ter efetivamente um ato forte e educar os jogadores que não sofrem atos racistas a compreender a violência do racismo. Evidentemente, sempre tem as pessoas que vão frear, porque as coisas não mudam. Por que? Em regra geral, cada um de nós tem a tendência de não querer que as coisas mudem. Porque mudar significa fazer um esforço. Assim, eu penso que o futebol precisa passar a mensagem que hoje nós não aceitamos mais esses atos de racismo.