Circuito Entrevista

Membro da OIT fala sobre a evolução do trabalho escravo no Brasil

“Passados 127 anos da abolição da escravatura, em 1888, o país enfrenta uma escravidão tão dura e que explora a níveis absurdos a dignidade humana tanto quanto aquela do Brasil Império”, é o que explicou em entrevista ao Jornal Circuito Mato Grosso, o Coordenador oficial da unidade contra o trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Antônio Carlos Melo Rosa. Extinta na lei e com novas significações, a escravidão atual evoluiu e continua a manter um ciclo de exclusão e exploração dos direitos humanos na zona rural, e mais recentemente nos grandes centros urbanos do país.

Circuito Mato Grosso: qual é a definição para caracterizar o trabalho escravo no Brasil atualmente?

Antônio Carlos Melo: O termo correto seria ‘trabalho análogo ao de escravo’, pois não temos mais o trabalhador como mercadoria. Porém esse foi o termo mais usado e que ficou mais conhecido. Contudo Precisamos lembrar que diferentemente da escravidão do século 19, nós não temos o mercado escravagista oficial. Por isso a terminologia tenta não rememorar essa época, dos grilhões, acorrentados em navios e dos castigos corporais.

Existem duas definições sobre o tema de trabalho análogo ao de escravo o da OIT e o brasileiro. O brasileiro está previsto no Código Penal, no artigo 149. Atualmente é dividido em quatro conceitos que são as jornadas exaustivas de trabalho, Condições degradantes, trabalho forçado e privação de liberdade.

É importante ressaltar que não é preciso que uma caso esteja qualificado em todas as quatros formas definidas em lei. Cada uma isoladamente já qualifica o trabalho análogo ao de escravo, no Brasil.

CMT: como as pessoas são exportas ao trabalho escravo?

ACM: O código Penal define então que submeter uma pessoa a trabalhos forçados sem que ela permita, ou autorize ou mesmo mediante fraude ou qualquer tipo de enganação é qualificado como uma das formas de escravidão moderna.

Há casos que o proprietário da fazenda monta o ‘sistema de barracão’, onde há coisas com preços extorsivos a venda (alimentos, epis, roupas) e o trabalhador que precisa se alimentar, vai fazendo uma dívida impossível de ser paga. O ciclo o leva a total dependência do patrão e ai precisa trabalhar para não morrer de fome.

CMT: hoje em dia muitos dos trabalhadores são expostos a muitas horas de trabalho. O que define que este ou aquele está ultrapassando o limete legal?

ACM: Existe uma polêmica que está sendo levantada nos últimos dias sobre duas das condições que qualificariam o trabalho escravo. A jornada exaustiva e as condições degradantes. Pois as outras duas (trabalho forçado e privação de liberdade) são cabais e incontestáveis para os estudiosos.

Todavia quem definiria os limites de uma jornada exaustiva ou de condições degradantes? Estudiosos no assunto afirmam que condição degradante é aquela que o trabalhador é submetido e que o faz perder a dignidade da vida humana. Ele é coisificado e tratado como insignificante. Há casos que o trabalhador precisa ficar em barracões de lona preta, sem água potável, ou alimentação digna, sem equipamentos de proteção individual, sem uma estrutura mínima de trabalho.

Enquanto isso a jornada exaustiva pode levar o trabalhador a acordar as 4 da manhã e ir trabalhar 12h debaixo do sol quente, sem que haja um tempo para sua recuperação. Isso com o tempo vai esgotando a vítimas até ao ponto de leva-lo a morte. Não é igual a nós que trabalhamos 12 ou mais horas atrás de uma mesa de computador e sentado em uma cadeira. No nosso caso temos a estrutura adequada para trabalharmos.

CMT: a escravidão atual é comparável a escravidão do século XIX? Quais são as principais situações que passam um trabalhador nessas condições,  hoje em dia?

ACM: A escravidão moderna é tão perversa quanto a escravidão do império. E não quer dizer que não aconteça, esse dias foi flagrado pessoas vendendo haitianos numa praça de São Paulo. Mais isso não é a regra, pois como disse não há um mercado formal depara negociação de escravos como antes. Apesar de existir locais onde os trabalhadores são guardados por capatazes armados ou sob ameaças.

Essa escravidão atual é uma chaga na sociedade e submete as pessoas a tão alto grau de insalubridade que elas são verdadeiramente coisificadas. Em fazendas onde se tem a criação de gado, por exemplo, os bois tem prioridade em beber a água mais limpa do rio. Depois de tudo é que os peões podem beber a água suja. Ou seja, o gado que é algo comercializado se torna mais importante que a saúde dos trabalhadores.

CMT: como identificar esse crime? Quais as principais dificuldades para encontrar as vítimas?

ACM: Ele se trata de um crime invisível, pois está dentro das casas, no interior dos domicílios. Ao contrário do trabalho infantil, que um senso pode responder ao nível de crianças que trabalham (pois os pais respondem facilmente se possuem um filho que trabalha), não é possível chegar ao patrão e perguntar se ele submete os empregados a condições de escravos.

Essa é uma dificuldade muito grande, pois existe a inviolabilidade do lar na constituição brasileira. Por conta disso, a não ser que recebamos uma denúncia, não podemos entrar nas casas e ir perguntado sobre os empregados. E as vezes é lá que estão empregados domésticos, peões e costureiras que estão sendo submetidos a escravidão.

CMT: Quais trabalhadores estão mais expostos a se tornar 'escravos'? 

ACM: Os mais vulneráveis a esse risco social são na maioria analfabetos ou pessoas que sairam cedo da escola, negros ou pardos, sem qualificação e trabalhando na informalidade em sua maioria. São pessoas que são 'pegas para criar' e são taxadas como 'da família', mas que na verdade estão sendo servas de pessoas sem poder sair do local, ou estudar. As vezes são crianças, ai junta-se trabalho escravo a trabalho infantil causando outro gradne prejuízo a sociedade.

CMT: Onde é mais comum se encontrar trabalhadores assim?

ACM: Apesar de ser o meio rural o local onde mais foram encontrados vítimas – 18 pontos em 2014, segundo dados do MPT (ministério Publico do Trabalho de Mato Grosso), o trabalho escravo não existe somente ali: ocorre também nas áreas urbanas, porém em menor intensidade. O trabalho escravo urbano é de outra natureza.

No Brasil, os principais casos de escravidão urbana ocorrem na região metropolitana de São Paulo, onde os imigrantes ilegais são predominantemente latino-americanos, sobretudo os bolivianos, e mais recentemente os asiáticos, que trabalham dezenas de horas diárias, sem folga e com baixíssimos salários, geralmente em oficinas de costura. Uma das soluções para essa situação é a regularização desses imigrantes e do seu trabalho.

CMT: Como combater essa situação de risco?

ACM: Para tentar controlar esse risco social da escravidão há três formas de ações que os órgãos de fiscalização usam: por meio da repressão, prevenção e atendimento às vítimas da exploração do trabalho escravo. Por meio do Ministério Publico do Trabalho, Ministério Público Estadual e Federal, Polícia e denúncias nós podemos ir até os locais suspeitos e intervir e punir com multas e publicidade dos casos. Há hoje em Mato Grosso uma ‘lista suja’ de 18 empregadores que usavam mão de obra escrava. A maioria está ligada à agropecuária e um dos casos à construção civil urbana.

Ulisses Lalio

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