Quem vive nas ruas muitas vezes se acostuma a ser ignorado, evitado por quem passa. É uma população invisível que perambula pelas cidades. Mas você vai conhecer os profissionais que decidiram quebrar essa barreira: olhar para essas pessoas, estender a mão para elas.
O Fantástico acompanhou o dia a dia das equipes de um projeto dedicado a atender moradores de rua pelo Brasil. Um trabalho que tem como objetivo colocar em prática a principal missão da medicina: aliviar o sofrimento humano.
Você consegue enxergar quem não está protegido no conforto de uma casa? Você consegue ver? Olhar para aqueles que passam invisíveis é a profissão e o propósito da Valeska.
Morador de rua: Você é assistente social?
Valeska Antunes, médica do Consultório na Rua: Não. Eu sou médica. Eu não faço caridade. No meu trabalho, de fato, nós somos funcionários públicos. Recebemos devidamente o salário por isso. Sou médica de família e comunidade.
Às vezes, a Valeska só precisa mostrar que seus pacientes são como outros quaisquer. “A gente acha que é importante que elas possam sentir que elas têm direito a acessar o serviço de saúde. Porque a gente percebe que uma das coisas é que as pessoas acham que elas não pertencem a esse lugar”, conta Valeska Antunes.
“Vamos com a gente lá agora e aí a gente já faz de uma vez. E aí eu já dou o remédio para você todo lá. Deixa eu me lembrar das outras coisas que a gente tinha deixado pendente”, diz Valeska ao conversar com uma moradora de rua.
A mudança para a Fran começou com um toque: “Ela é uma ótima médica. Porque ela te olha. Ela te cuida, diz Franciane da Cruz, moradora de rua.
“Ela já é diferente. Ela te toca. Ela dá esperança para a gente de novo”, diz Franciane.
O consultório na rua é um projeto de responsabilidade das prefeituras e financiado pelo Ministério da Saúde.
“Nos últimos dois anos, foram feitos mais de 140 mil atendimentos pra população em situação de rua, apenas considerando os consultórios na rua. No Brasil hoje, existem mais de 140 consultórios na rua em funcionamento. Esses consultórios, eles estão instalados em mais de 80 cidade no Brasil”, diz Eduardo Melo, diretor do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.
“Mas o número ainda é muito pequeno. Nós precisaríamos, pelo menos, de um consultório em cada município. E para aqueles municípios que têm mais de 300 mil habitantes, nós precisaríamos, pelo menos, de cinco nesses municípios. Nós acreditamos que já passe mais de 500 mil pessoas em situação de rua no Brasil inteiro”, diz Maria Lucia Pereira, coordenadora do Movimento Nacional de População de Rua.
“É importante se atingir essa camada da sociedade que é invisível aos olhos”, diz Césio.
O Césio trabalha em uma das equipes do projeto Consultório na Rua, na periferia do Rio de Janeiro.
“As doenças de pele são comuns, os traumas também são comuns e uma luta que a gente tem, que é vencer a tuberculose. O grande grupo se concentra entre 20 e 40 anos. A gente pacientes até de 70 anos”, explica Césio.
Césio trabalha em outra equipe do projeto ‘Consultório na Rua’, na periferia do Rio de Janeiro.
“Afrodescendentes e predominam os homens”, diz o médico do Consultório na Rua Césio Sotero
Um conflito familiar empurrou Seu Hugo para a rua. E ele não vê mais motivos para sair de lá.
Hugo Alberto da Silva, morador de rua: Tem problema não. Pode furar. Pode furar?
Césio Sotero: Seu açúcar está muito alto.
Hugo Alberto da Silva: Mas o senhor sabe o que é? É que eu como muito açúcar.
Césio Sotero: E não toma remédio não?
Hugo Alberto da Silva: Tomo remédio nenhum. Eu corro de remédio.
“Esse respeitar esse tempo de cada um é importante. Até que chega um tempo que ele diz assim: ‘você pode cuidar de mim?’”, conta Césio.
Até um tempinho atrás, o Anderson pouco se importava com o presente e não acreditava no futuro.
“A droga, ela me tirou da minha casa. Eu vivi na rua praticamente dois anos e pouco. Eu não tinha onde dormir. Eu não tomava banho. Aí eles chegaram lá e me abraçaram como se fosse uma pessoa da família deles. Graças a Deus eu não uso mais nenhuma droga”, conta Anderson Sá Vieira, ex-morador de rua.
Tratar uma ferida grave na coxa foi o início de uma transformação. “Em uma das consultas com ele, ele veio falando: ‘Ah, Paola. Eu sou analfabeto e eu gostaria de aprender a ler e a escrever”, conta Paola Guimarães, terapeuta ocupacional do Consultório na Rua.
“Começou com esse abraço e esse abraço, que eles me deram, me levou para melhor”, diz Anderson.
O consultório na rua já existe há 3 anos. E foi inspirado em um projeto criado por um professor da Universidade Federal da Bahia, o doutor Nery. “A primeira experiência de consultório de rua foi em 1995. Eu propus aos meus colegas organizar um carro com médico, enfermeiro, assistente social, com psicólogo e com trabalhador social, e irmos para a rua ver essas pessoas”, conta Antônio Nery Filho, médico do Consultório de Rua.
Fantástico: Você pode ser considerado um médico diferente? A atuação, a forma como o senhor trabalha?
Antônio Nery Filho, médico do Consultório de Rua: Eu acho que sim. Eu acho que a medicina tradicionalmente afastou dessa perspectiva de acolher o outro na sua integralidade, sobretudo no seu sofrimento.
Um consultório sem portas, janelas, sem paredes, pode surgir em qualquer lugar.
“A gente vai atender as pessoas onde a vida acontece. No momento que a gente está ali, diante dela e a gente se coloca diante delas e olha nesse momento você é a pessoa mais importante. A gente acredita que algumas pequenas revoluções se dão naquele encontro. E é nisso que a gente aposta. A gente faz pequenas revoluções cotidianas”, diz a psicóloga do Consultório de Rua, Alessandra Tranquilli.
“Primeiro se aproxima, vê como é que são as coisas, dá um bom dia, oferece algum serviço, e a partir daí as pessoas vão acreditando em você, construindo um vínculo com você”, acredita o médico Césio Sotero.
“O trabalho formiguinha, dar o remédio, o comprimido na mão, supervisionar aquela medicação que ele está tomando diariamente é uma garantia que se tem de que aquele tratamento que foi iniciado terá um termino com sucesso”, explica Césio.
“Esse doutor mesmo, eu gosto dele à pampa. Porque ele é bom, trata a gente bem. Quando a pessoa é a boa a gente tem que ser bom com a pessoa”, afirma o morador de rua, Hugo Alberto da Silva.
Como prometido, a equipe de Salvador voltou para ajudar a mulher com suspeita de tuberculose a conseguir um atendimento no hospital.
“Por enquanto nada de atendimento. Só atende paciente se for para UTI. Não tocaram nela. Verificou só a pressão arterial e disse que é para ir para outra unidade. Aqui não tem atendimento. A maior dificuldade que a gente tem é essa. Você pega o paciente, traz para as unidades de saúde. Chega aqui e a gente não consegue o atendimento nas unidades. Eu já ouvi de um médico dizer: porque você não levou primeiro para dar um banho? Dava um banho e trazia a paciente para eu atender”, afirma Tiago Moisés, psicólogo do Consultório de Rua.
“Experimentar essa exclusão. Essa violência cotidiana que eles vivem é muito difícil”, diz Alessandra Tranquilli, psicóloga do Consultório de Rua.
“Conseguimos o atendimento para ela, mas a gente sabe pelo dia a dia que acelerou muito por causa de vocês aqui”, acredita o psicólogo do Consultório de Rua, Francisco Carlos Cunha.
“É possível mudar. É possível levar um pouquinho para esse povo. E isso é muito bom, ora. É muito bom”, afirma Césio Sotero.
“Eu entrei para a casa de recuperação e todo o dia eu venho porque eu não gosto de perder nenhuma aula. Isso aí é o que eu não consegui fazer na minha infância. Agora graças a Deus eu realizei meu sonho. Quando eu vi que já estava conseguindo ler: eu me senti gente. Eu me senti gente. Eu me senti sábio. Tudo o que aconteceu na minha vida eu agradeço ao Consultório de Rua. Tudo de bom que aconteceu na minha vida eu agradeço a essas pessoas do Consultório de Rua”, diz o ex-morador de rua Anderson Sá Vieira.
“Meu projeto agora eu queria, no momento, alugar minha casinha, arrumar um trabalho e se Deus quiser, ser uma veterinária. Hoje mesmo teve uma cachorrinha, que foi atropelada, e a gente teve que acabar dando ela para um moço senão ela ia acabar morrendo aqui. É bom a gente salvar os animais. Tem muito aí jogados na rua”, afirma a moradora de rua Franciane da Cruz.
O Sol se põe, mas para esses profissionais o dia está longe de terminar
“Desistir? Foram poucas vezes. Mas acho que já aconteceu”, diz a médica Valeska Andrade.
“Mas eles podem desistir. Quem não pode desistir somos nós, diz Césio.
“A gente volta para casa mas o pensamento ainda continua lá no campo porque você diz: ‘Meu Deus e essas pessoas?”
“Em resumo, eu não diria que o nosso trabalho de rua visa salvar as pessoas. Mas visa torná-las visíveis. Reconhecê-las como cidadãs essas pessoas”, afirma.
“Eu estou feliz por causa de que, né? Eu estou feliz. Eu revivi de novo. Eu sou outro Anderson. O Anderson velho já morreu. Agora eu sou Anderson Sá Vieira”, afirma.
Fonte: G1