“Na verdade, ela me enchia o saco porque ela me chamava de urso gordo”, conta Sônia em meio a gargalhadas. “Ela dormia na cama de baixo e eu na cama de cima. Então, ela estava sempre me enchendo o saco”, conta com um tom de carinho.
Desta época, Sônia guarda uma relíquia: o bilhete que recebeu da hoje presidente da República, quando saiu do presídio. “A carta começa com a seguinte frase: ‘Querido Urso Gordo’. Guardo comigo até hoje esse bilhete, a sete chaves. Ela era uma pessoa diferente. Muito quieta, sempre muito estudiosa, passava o dia lendo muito, mas também fazia trabalhos manuais para passar o tempo. Todas nós fazíamos crochê, de barbante. Hoje não gosto nem de ver”, lembra.
Sônia é uma das “donzelas da torre”, apelido do grupo de mulheres que passou pelo prédio mais alto, bem no centro do Presídio Tiradentes. Da “torre”, propriamente dita, restou apenas o arco de entrada na Avenida Tiradentes, esquina com a Praça Coronel Fernando Prestes em São Paulo. No final de 1972, todo presídio foi demolido em função das obras do Metrô.
“Justiçamento”
No baú de memórias de Sônia, ela também fala de um rosto nunca lhe saiu da cabeça. A face do presidente do grupo Ultra, o dinamarquês naturalizado brasileiro, Henning Albert Boilesen, assassinado em São Paulo pela resistência em 15 de abril de 1971.
O grupo Ultra, dono da empresa Ultragás, é investigado por ser responsável pela “caixinha” dos empresários financiadores da chamada Operação Bandeirantes (Oban). A Oban foi financiada por diversos doadores privados. Além do Grupo Ultra, figuram empresas como a Ford, GM, Grupo Camargo Corrêa, Grupo Objetivo, Grupo Folha, o banqueiro Amador Aguiar, do Bradesco, entre outros, todos na lista de investigação da Comissão Nacional da Verdade.
Sem a memória fotográfica de Sônia, o “justiçamento” de Boilesen, termo usado pelos militantes, não teria sido possível. Ela conta que, quando ficou presa na Oban, a visita do empresário era aguardada como alvoroço pelos torturadores.
“Havia uma gritaria geral. Os policiais repetiam: o chefão vai chegar, o chefão vai chegar. Eu vi, por uma ou duas vezes, um homem, de terno e gravata, que entrava nas celas, fazia perguntas, falava com os torturadores. Estava na cara que era um civil dando ordens aos miliares”.
A identificação só ocorreu depois que Sônia saiu da prisão, em liberdade condicional, e voltou para a casa dos pais. “Meu pai era diretor de uma indústria e trazia muitas revistas empresariais para casa. Um dia ele trouxe uma revista chamada Banas, que não existe mais. Foto de capa: Henning Albert Boilesen. Passei essa informação para a organização, localizamos a casa e daí foi feito o “justiçamento” dele”.
Luta armada
Para Sônia, seu maior orgulho foi não ter nunca entregado nenhum dos companheiros, apesar das torturas que sofreu na prisão. “Me orgulho de nunca ter entregado um companheiro”, diz. Para ela, a luta armada não foi um erro. Era uma tática necessária em um momento em que não havia outras armas.
“O que nós fizemos foi importantíssimo, tinha que ser feito. Foi uma forma de mostrar que tinha gente disposta a lutar contra eles, que tinha gente que não ia baixar a cabeça frente a eles. Não tinha outro jeito de fazer. Não tinha rádio, não tinha televisão, não podia panfletar, não podia nada, o Congresso estava fechado. Só nos restava partir para a luta”, destacou.
“A gente errou em algumas coisas, mas acho que, em respeito a todos os companheiros assassinados, sob tortura, sob as formas mais cruéis de violência, nós temos que valorizar nossa luta. Nós contribuímos um pouquinho para a derrota da ditadura porque eu acho que a gente deixou sementes, a gente mostrou quer era possível. Depois outras formas de lutar apareceram, mas eu acho que nossa coragem, nosso desprendimento, nossa dedicação valeram”, ressaltou.