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Mato Grosso e o mundo árabe, uma ligação secular

“Deus é maior. Deus é maior. Testemunho que não há divindade maior que Deus. Testemunho que não há divindade maior que Deus (…)”, são os primeiros versos do Azam, a mensagem que ecoa cinco vezes ao dia na torre da Mesquita de Cuiabá.

O chamado para as orações mulçumanas é uma característica do bairro Bandeirantes, onde o prédio verde com arabescos e paredes de mármore branco impõe-se na paisagem, visível de vários pontos centrais da capital.

A mesquita é um dos cartões-postais cuiabanos, assim com os restaurantes ‘árabes’, alguns inclusive citados nos guias internacionais de turismo. A presença desta diversidade cultura é mais um exemplo do perfil acolhedor dos mato-grossenses, que receberam sem dramas, muitos povos marcados por conflitos étnicos e culturais.

Divididos entre católicos e mulçumanos, a presença dos sírio-libaneses em uma região tão distante de sua terra natal está ligada às quatro ondas de migração que impactaram a vida de grande parte dos 18 a 38 países do Oriente Médio.

 Ainda no século XIX, os primeiros libaneses que chegaram a Mato Grosso vieram para fugir da Guerra da Crimeia. Classificados como ‘turcos’ pela população brasileira, na verdade a grande maioria tinha origem libanesa e síria, mas por portar o passaporte do Império Turco-otomano ficaram conhecidos com o nome de seus opressores.

Foram esses imigrantes que abriram no atual centro de Cuiabá “o quadrilátero comercial árabe”, entre a Avenida Getúlio Vargas e as ruas 13 de Junho, Generoso Ponce e Galdino Pimentel, onde centenas de lojas dos mais diversos tipos de comércios deram os primeiros passos lojistas da capital.

“Meus avós vieram da cidade Zahllen, perto de Beirute. Todos esses jovens libaneses vieram para trabalhar no comércio. Meu avô, Hide Alfredo Scaff, era comerciante e tinha uma empresa de navegação que fazia a rota entre Cuiabá, Cáceres, Corumbá e Montevidéu (Uruguai). Os barcos eram movidos a caldeira, como o Itajaí e a Filosofina, batizado assim em homenagem à primeira mulher a dirigir em Cuiabá”, conta o médico e poeta Ivens Scaff.

Essas primeiras famílias ocupavam a região do Porto, concentrados na Rua XV de Novembro, e do Centro, entre a Rua de Baixo (Galdino Pimentel) e a Rua Treze de Junho. Alguns dos casarões onde viviam ainda ostentam os famosos “muxarabis” nas janelas, as treliças de ferro, característicos elementos arquitetônicos do mundo árabe.

A venda de tecidos e sapatos marcava o comércio libanês nas ruas de Cuiabá. “A Casa Mansur (da família Mansur Bunlai) era uma das sapatarias mais famosas da cidade”, relembra Ivens Scaff. Além desses, outros nomes conhecidos na cidade vieram neste período de migração.

Scaff, Bussiki, Gataz, Feguri, Nadaf, Zahour, Haddad e Caliz faziam parte do grupo que se instalou no Porto. Os Ahi, Affi e Malouf ficaram no centro. Apesar das raízes orientais, a grande maioria casou-se com mato-grossenses.

“Eles vieram para ficar. Meu pai era filho de libanês e libanesa e já se casou com uma cuiabana. A integração foi muito grande. Tão grande que uma vez uma pessoa veio dar um curso de culinária e perguntou o nome de uma comida cuiabana e alguém falou kibe”, conta Ivens Scaff.  

O Clube Monte Líbano e a Rua Sírio-Libanesa, no bairro Popular, são os símbolos desse grupo. Entre esses, poucos voltaram para sua terra natal, a grande maioria esqueceu o idioma árabe e preservou mais a culinária como raiz cultural.

No censo de 1920, os “turcos árabes” correspondiam ao quarto maior grupo de imigrantes de Mato Grosso, ficando atrás dos paraguaios, argentinos e portugueses. No caso de Cuiabá, o maior contingente foi o italiano, seguido pelos turcos árabes, paraguaios e portugueses.

Os Mutran, Feror e a família Gabriel seriam os últimos libaneses católicos que chegaram a Mato Grosso.  Quase quatro décadas depois, a cidade recebeu um novo grupo: os mulçumanos. O comércio central foi repassado para os conterrâneos pelos filhos dos primeiros imigrantes que já tinham seguido carreira de profissionais liberais, como médicos e advogados.

A Rua Treze foi tomada pacificamente pelo comércio dos grupos islâmicos. A inauguração da Casa Lua Nova seria uma segunda etapa dessa migração. Hoje, as quase 200 famílias que formam essa comunidade, em sua maioria, vieram todos da mesma região, o Vale do Beca, entre o Líbano e a Síria.

“Um veio primeiro e foi chamando o outro que trouxe consigo as suas famílias”, explica Yesser Dahrouge, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de Cuiabá. A oportunidade de negócios e o comércio foram os principais atrativos declarados.

A guerra foi novamente o motivador dessa diáspora entre os mais de 10 mil quilômetros em linha reta que separam Cuiabá do Líbano.  A maioria se estabeleceu na cidade como comerciante em ruas como a 13 de Junho, Galdino Pimentel e Avenida Generoso Ponce.

Ao contrário do grupo católico, esses novos imigrantes preservaram suas raízes culturais, mantendo o idioma árabe. A construção da Mesquita de Cuiabá, em 1975, foi iniciativa dessas famílias.

Até então havia menos de dez mesquitas no Brasil, em São Paulo (a primeira construída em 1952) e Londrina, no Paraná. Hoje existem mais de 100 mesquitas no país, sendo a de Cuiabá uma das pioneiras deste movimento. 

De acordo com o censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 35 mil muçulmanos no país, mas algumas entidades islâmicas afirmam que são 1,5 milhão, um número difícil de ser mensurar uma vez que a grande maioria acaba classificada como outras religiões pelo censo. 

A história da Mesquita de Cuiabá revela o esforço dessas famílias para manter suas raízes culturais. Construída com uma doação feita pelo Rei Faisal, da Arábia Saudita, um pouco antes de sua morte, a obra levou quatro anos para ser finalizada.

 Os jornais de época revelam que o projeto foi lançado pela comunidade mulçumana de Cuiabá em 1975 e concluída em 1978.

Com quarenta anos, o local tornou-se um dos difusores da cultura islâmica em Mato Grosso. Junto à mesquita também funciona uma escola de língua árabe e de religião. Ali, os integrantes da comunidade aprendem os versos do Alcorão, o livro sagrado do povo mulçumano, escrito pelo profeta Maomé.

“Além da Mesquita, houve um esforço para a fundação do cemitério mulçumano em Mato Grosso. Para que possamos seguir a nossa tradição nos ritos funerários”, explica Yesser Dahrouge.

A inauguração da mesquita foi uma dos grandes eventos de 1978. Com a participação do governador do Estado, José Garcia Neto, dos embaixadores da Arábia Saudita, Líbano, Gabão, Bangladesh e Paquistão, e dos Sheik Mamom Kabari, Samir Hobaika e Abdulah Murhtar.

Naquela manhã do dia 10 de agosto, a Rua Baltazar Navarro tornou-se de fato um verdadeiro pedaço do Oriente Médio em Cuiabá. Carros cercados de homens vestindo as tradicionais túnicas árabes circularam o dia todo por ali, terminaram a cerimônia com um banquete no Clube Dom Bosco, um dos mais sofisticados da cidade à época.  

Quase quarenta anos depois, a mesquita nunca foi reformada, mas ainda preserva a sua beleza original. Coberta por tapetes e decorada com os versos sagrados do Alcorão, todos os dias os membros da comunidade islâmica de Cuiabá se encontram para rezar voltados para Meca (Leste), a sagrada cidade mulçumana, fundada em 866 d.C.

Os filhos e netos dos homens que a construíram tornaram-se os guardiões do local. “Muitos voltaram para o Líbano. Mas para nós é uma honra estarmos aqui, mantendo o local e dando oportunidade para que outros possam orar e conhecer mais sobre o Islã”, explica Kassen Morhamed Omais, um dos frequentadores do local e filho de pioneiros.

A mesquita foi uma forma de os mulçumanos simbolizarem o seu vínculo com Cuiabá. “Em qualquer local podemos orar, não seria necessário construir esse templo apenas por questões religiosas. A ideia era esse símbolo de que meus pais, avós e as famílias que se empenharam nessa obra queriam deixar um legado para a cidade e promoverem a integração das famílias”, diz Kassen.

Em pleno mês do Ramadã (16/5 a 14/6), o período sagrado de jejum e oração dos mulçumanos, a mesquita se mantém aberta a todos que queiram conhecê-la. Cercada por quadras esportivas e um parquinho para crianças, o local é também um centro cultural. A proposta é que ali seja um ponto de encontro dos sírios, libaneses e mulçumanos de países como Egito, Sudão, que escolheram a capital mato-grossense como morada.

No dia 15 de junho, as centenas de cuiabanos mulçumanos que começaram, no dia 17 de maio, a jejuar e evitar relações sexuais desde o nascer até o pôr do sol para recitar o Alcorão, terminam o período sagrado do Ramadã.

Quando a primeira lua crescente de junho for vista no céu, um banquete anual de mais de quarenta anos irá reafirmar que ali um pedaço da cultura sírio-libanesa resiste no coração da América Latina.

 

O Islã em Mato Grosso

De origem árabe, a religião teve sua expansão com o profeta Maomé a partir de 622 com a criação da Umma (comunidade de crentes) na cidade de Medina, onde o Islã fundamentou as características de religião-estado.

Segundo a crença mulçumana, Maomé é o mais recente e último profeta de Deus. Como figura política, ele unificou várias tribos árabes, o que permitiu o que viria a ser um califado, entre a Pérsia e a Península Ibérica.

 Após a morte de Maomé (632), os quatro califas que o sucederam expandiram a religião para além dos domínios árabes. Atualmente estima-se que os adeptos do Islã (submissão à vontade de Deus) compõem a religião que mais cresce no mundo, e que tenha até 2 bilhões de adeptos. No Brasil eles seriam 1,5 milhão. 

O islamismo professa a fé no profeta Maomé e apresenta cinco pilares práticos, são eles: shahada (testemunho de fé), salat (orações diárias), zakat (caridade aos mais necessitados), saum (jejum) e hajj (peregrinação a Meca).

“O testemunho da fé é a porta do Islã”, explica o sheikh Abdussalam Almansori em entrevista ao Circuito Mato Grosso. “Não há ninguém merecedor de adoração exceto Deus. E Muhammed é o Seu mensageiro” é a afirmação que marca a entrada da pessoa no Islã; tal afirmação significa a crença de que o propósito da vida é servir a Deus.

O salat é um conjunto de cinco orações que devem ser feitas diariamente ao amanhecer, ao meio-dia, à tarde, ao pôr do sol e à noite, buscando fortalecer o ritmo do dia e proporcionando um pequeno intervalo de paz. Envolvendo o corpo, mente e alma, as orações acontecem por volta de 10 minutos.

Já o zakat promove a caridade, acontecendo de diversas formas. Ao fim do Ramadã, por exemplo, cada muçulmano deve doar 3 quilos em alimentos para uma pessoa necessitada, como forma de purificar seu jejum. Ao longo do ano, espera-se que o mulçumano doe 2,5% de sua renda anual líquida à caridade.

O hajj obriga que todo muçulmano adulto, homem ou mulher, que tenha condições financeiras e de saúde deva ir para Meca, cidade sagrada para o Islã, localizada na Arábia Saudita. Anualmente, mais de 3 milhões de fiéis vão até a cidade.
 

Ramadã
Durante o Ramadã, acontece o saum (jejum), um dos cinco pilares do islamismo. O jejum acontece somente uma vez ao ano, com os fiéis se abstendo de comida, bebida e relações sexuais entre o nascer e o pôr do sol. Antes da alvorada e depois do pôr do sol, o fiel pode digerir refeições normalmente. Algumas famílias, inclusive, se reúnem à noite para um grande jantar.

O Ramadã é nono mês do calendário lunar seguido pelos muçulmanos. Uma vez que o calendário é lunar, o Ramadã não é celebrado nas mesmas datas anualmente, variando sempre, começando cerca de 10 dias mais cedo a cada ano solar. Em 2018, o Ramadã teve início do dia 16 de maio no calendário gregoriano.
 

O jejum é usado como uma ferramenta de aprendizado e treinamento de autocontrole e disciplina. Muitos o enxergam como um período de sacrifício, mas ele propõe reflexão, purificação e renovação espiritual, e faz com que os muçulmanos fiquem mais próximos de Allah. Durante o dia, o fiel realiza as cinco orações exigidas pelo salat (outro pilar) e ainda pode fazer uma sexta oração caso ache necessária.

O Ramadã e, em consequência, o jejum acontece para todos os muçulmanos, porém, apesar da exigência, há brechas. Grávidas, mulheres em período de menstruação ou pós-parto, idosos, pessoas enfermas, viajantes e adolescentes antes da puberdade não têm a obrigação de jejuar durante o Ramadã, mas cada um deles tem regras a serem seguidas para que a quebra do jejum possa ser feita.

Aqueles que quebram o jejum precisam repor os dias perdidos. Por conta da idade avançada, o idoso não tem a mesma obrigação. Logo, por dia de jejum, a família ou o próprio idoso tem a obrigação de alimentar uma pessoa necessitada. Pessoas com doenças terminais seguem a mesma regra.  

Existem duas grandes correntes do Islã no mundo: sunitas e xiitas. Em Mato Grosso a maioria da comunidade é de origem sunita, apesar de haverem períodos em que famílias xiitas também vivem na capital.

A separação teve origem em uma disputa logo após a morte do profeta Maomé sobre quem deveria liderar a comunidade muçulmana. Hoje, a grande maioria dos muçulmanos é sunita – estima-se que entre 85% e 90%.

Membros das duas vertentes coexistem há séculos e compartilham práticas e crenças fundamentais. Os sunitas se consideram o ramo ortodoxo e tradicionalista do Islã.

Muçulmanos sunitas se consideram o ramo ortodoxo e tradicionalista do Islã. A tradição, neste caso, refere-se a práticas baseadas em precedentes ou relatos das ações do profeta Maomé e daqueles próximos a ele. Eles veneram todos os profetas do Alcorão, mas veem Maomé como o profeta derradeiro.

Os xiitas seriam cerca de um décimo do total de muçulmanos, entre 120 e 170 milhões. Há grandes comunidades xiitas no Afeganistão, Índia, Kuwait, Líbano, Paquistão, Catar, Síria, Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

 

 

A migração libanesa para Mato Grosso

A chegada dos primeiros povos do Oriente Médio a Mato Grosso data do final do século XIX e início do século XX.  No Brasil, esse período coincide com quatro períodos.

 

1 – Domínio otomano (1880-1920)
Caracterizada pela emigração de cristãos descontentes com o domínio turco-otomano e com a falta de perspectivas econômicas pela alta densidade demográfica, baixa urbanização, industrialização quase nula e agricultura deficiente; movimento reforçado pela ambição de riqueza fácil a ser alcançada na América – o que de fato foi obtido por grande parte desses pioneiros.
Principais grupos imigrantes: população rural (cristãos) do Monte Líbano, de Zahle, do Vale do Bekaa e do sul do Líbano.

 

2: Entre-guerras (1920-1940)
Marcada pela emigração de cristãos e muçulmanos buscando melhores perspectivas econômicas e descontentes com a nova configuração do Estado libanês após o término da Primeira Guerra.
Principais grupos imigrantes: população rural (cristãos e muçulmanos) do Monte Líbano, do Vale do Bekaa e do Sul do Líbano; cristãos de Zahle, Beirute, Trípoli e cidades do Sul.

 

3: Líbano independente (194-1975)
Caracterizada pela saída de cristãos e muçulmanos, sobretudo de origem urbana, que se deparam com a falta de oportunidade profissional, acentuada pela depressão econômica posterior à Segunda Guerra e pelos conflitos de origem religiosa e política que ameaçam a integridade do país a partir de 1958.
Principais grupos imigrantes: muçulmanos e cristãos de Zahle, Beirute, Trípoli e cidades do Sul; população rural do Monte Líbano, do Vale do Bekaa e do Sul do Líbano; nesta época há um aumento significativo na proporção dos muçulmanos emigrantes, tanto de origem urbana como rural.

 

4: Guerra do Líbano (1975-2000)
Motivada pelo conflito militar que eclodiu a partir do início da década de 1970 e pela busca de nacionalidade brasileira.
Principais grupos imigrantes: muçulmanos sunitas e xiitas do Vale do Bekaa e do sul do Líbano; cristãos do Monte Líbano, Beirute, e cidades do norte do país.
Motivações principais: falta de perspectivas econômicas devido à duração e intensidade da guerra; fuga temporária da guerra propriamente devido a atentados, bombardeios etc.

 (Fonte: Gilbert Anderson Brandão / ICHS-UFMT

 

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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