Cidades

Mato Grosso ainda não superou a cultura dos manicômios

Os serviços de atendimento à saúde mental em Mato Grosso caminham a passos lentos, travados pela resistência em encarar os casos de transtornos mentais como problema de saúde pública. Hoje, existe uma fragilizada Rede de Atendimento Psicossocial (RAPS), modelo que integra família e rede pública de saúde, que tenta substituir o programa anterior baseado em tratamento e internação a longo prazo em hospitais psiquiátricos.

Segundo a presidente do Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso (CRP18), Morgana Moura, três fatores pesam ainda contra a implantação do modelo de tratamento em rede para viés mais humanizado dos pacientes: o uso do dinheiro público, a formação dos profissionais e a visão social à qual ela chama de “cultura manicomial”.

“No modelo anterior os pacientes eram isolados da sociedade em internação por longo período em hospitais; seguia-se uma lógica manicomial. O modelo dos anos 1970 é mais humanitário, pois seus defensores acreditam que o paciente deve ser tratado na convivência com a sociedade, tendo a internação como último caso”, diz Morgana.

O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é parte importante da rede de saúde pública. Hoje, a unidade está instituída no Brasil em cinco vertentes com atendimento direcionado à classificação do estado dos pacientes e voltado para uma política intersetorial.  O CAPS I tem foco em usuários de drogas adultos com transtornos mentais graves e persistentes, transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. 

O público-alvo do CAPS II são adultos com transtornos mentais persistentes.  O modelo III do centro agrega o maior número de serviços, com a atribuição de trabalhar em substituição aos hospitais psiquiátricos.  Com previsão de cobertura para municípios com população acima de 200 mil habitantes, podem funcionar 24 horas, inclusive feriados e fins de semana. 

Os CAPS AD focam o atendimento a pessoas que consomem álcool de maneira prejudicial e outras drogas (AD), em cidades com mais de 200.000 habitantes, ou aquelas que estejam nas fronteiras, ou, ainda, as que façam rota de tráfico de drogas e possuem relevantes cenários epistemológicos, que precisem deste tipo de serviço para responder de forma eficaz à demanda da saúde mental.

Também existe unidade específica para o público infantojuvenil, o CAPSi. Ele oferece cuidado e proteção à criança e ao adolescente, atendendo em clínica especializada crianças e adolescentes, de 0 a 17anos, com transtorno mental severo, através das modalidades intensiva, semi-intensiva e não intensiva.

Existem hoje em Cuiabá cinco CAPS, que começaram a ser implantados em 2002 após medida do Ministério da Saúde. São um CAPS I, no bairro CPA IV, gerido pela prefeitura; um CAPSi sob tutela do governo estadual; um CAPS AD III Adolescer, também gerido pela prefeitura, com atendimento 24 horas; um CAPS AD II (Estado); e um CPAS II (município).

Conforme Cida Milhomem, membro do Fórum Permanente de Saúde Mental de Cuiabá, o orçamento aproximado é de R$ 108 mil mensais – R$ 102 mil transferidos pela União e R$ 6 mil, pelo governo estadual. Os recursos federais são destinados para as unidades administradas pela prefeitura, que libera contrapartidas para manutenção. O Fórum de Saúde estima que hoje são necessários cerca de R$ 60 mil/mês para cobrir a demanda dos CAPSs. O dobro do orçamento atual.

A importância de atendimento intersetorial

Os trabalhos de implantação da RAPS ficaram travados em 2015 devido à troca de gestores federal e municipal. O encaminhamento, que já estava lento em Mato Grosso, sofreu com mais entrave. Várzea Grande, no entanto, conseguiu avançar na implantação de atendimento ampliado no ano passado, puxado pela ênfase em serviços intersetoriais.

Conforme a responsável técnica pelo CAPS II no Jardim Imperador, assistente social Soraya Miter Simon, um grupo formado por servidores das secretarias de Educação, Assistência Social, Saúde e pela Guarda Municipal, impulsionou a efetivação da rede. A mudança teve efeito na implantação do programa Crack, é possível vencer, lançado em 2011 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

“Até 2015 era difícil oferecer atendimento que possibilitasse acesso a todos os setores da RAPS, porque os setores não se entendiam. A Saúde falava uma coisa, a Educação, outra, e a Assistência Social fazia o que achava que ela deveria fazer. Mas em 2016 isso mudou, conseguimos montar uma equipe em que os vários setores atendem os pacientes”, diz Soraya Miter Simon.

Em junho de 2016, a Prefeitura de Várzea Grande instituiu um Comitê Gestor Municipal para o programa Crack, é possível vencer. Representantes das áreas da saúde, assistência social, defesa social e educação integram o grupo, que está responsável por pensar políticas intersetoriais.

No mesmo ano, aconteceu o 1º Fórum Intersetorial de Atenção Psicossocial de Várzea Grande, evento que reuniu profissionais de várias áreas para debater políticas visando fortalecer e aumentar a cobertura das políticas públicas municipais. Por exemplo, os desafios para superar o tratamento manicomial, a gestão de atenção básica via responsabilidades compartilhadas, e medidas para garantir os direitos humanos. 

Conforme Soraya Miter Simon, a partir deste ano será desenvolvida campanha de prevenção ao uso de drogas em escolas municipais. O foco inicial são os bairros com alto índice de criminalidade e alta incidência de usuários de drogas, e escolas com alto índice de reprovação. 

Recurso limitado empaca implantação de rede

Recursos limitados para o financiamento da saúde mental é um dos entraves para implantação da RAPS. Conforme o Fórum Permanente de Saúde Mental de Cuiabá, os atendimentos oferecidos pela rede extrapolam o âmbito da saúde, com prestação de serviços no CAPS. 

“Um profissional de curso superior ganha hoje R$ 800 para trabalhar 40 horas [semanais]. Quando eu entrevisto alguém para trabalhar no setor, eu fico com vergonha de dizer o salário, porque não é salário justo”, comenta Cida Milhomem.

Ela diz que o plano de atendimento à saúde mental em Cuiabá está calcado no modelo instituído pela Lei Paulo Delgado (nº 10.2016), de 1989, que propõe uma nova regulamentação para tratamento de pacientes psiquiátricos com abordagem dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. O baixo financiamento, diz, dificulta que sejam realizados trabalhos de inserção nas comunidades.

“As normas que instituem os CAPSs estabelecem o mínimo de funcionários que devem estar em cada centro; isso depende da demanda. Os trabalhos desenvolvidos não ficam somente dentro de quatro paredes. É atendimento que envolve várias áreas”, afirma Cida Milhomem.

O problema atinge também municípios no interior de Mato Grosso. Conforme a pesquisadora Érika Oliveira, integrante do Coletivo da Saúde da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Comodoro (656 km de Cuiabá), cidade com 18 mil habitantes, não tem centro de referência de CAPS e os pacientes são transferidos para outras cidades.

“Os pacientes são transferidos para Cáceres ou Rondonópolis, cidades que também têm uma rede totalmente fragilizada. Há cidade com um psicólogo para 18 mil habitantes, e são atendimentos por meio de convênio com hospitais, o profissional vai uma vez por mês”, explica Érika.

Serviço público dever ser priorizado

Morgana Moura, por sua vez, defende reavaliação da estratégica de financiamento público a setores de saúde mental. Segundo ela, a RAPS deve ter prioridade do Estado na distribuição de recursos a entidades que oferecem atendimento a pacientes com transtorno mental.

Ela cita como exemplo a concorrência de comunidades terapêuticas para receber dinheiro público. Neste ano, cerca de R$ 2 milhões devem ser liberados pela Assembleia Legislativa em emendas parlamentares.

“Não somos contra as comunidades terapêuticas, elas têm o papel delas na oferta de atendimento. Mas não dispõem de estrutura para atender clinicamente os pacientes. Para isso existe a RAPS com seus vários serviços de atendimento”, diz Morgana.

A psicóloga afirma ainda que não há dispositivos para monitorar a aplicação de recursos liberados pelo Poder Público a comunidades terapêuticas e outras instituições afins da área. 

O credenciamento de instituições de acolhimento foi estabelecido via resolução normativa em agosto de 2016. A regra foi elaborada pelo Conselho Estadual de Políticas Públicas Sobre Drogas (Conesd), que prevê a aceitação somente de instituições em modelo de acolhimento voluntário para maiores de 18 anos e que tenham avaliação clínica, psicológica, psiquiátrica e sócio-familiar. 

O conselho também determina a apresentação de documentos, como atos de fundação das instituições, estatuto de funcionamento, contrato comercial, registro na Junta Comercial, alvará de inspeção da Vigilância Sanitária e alvará de localização e funcionamento, por exemplo.

 

Estigma contra pacientes com problemas mentais

Os estigmas de usuários de drogas e pessoas com transtorno mental são os principais fatores para a lenta transição em Mato Grosso do modelo de internação manicomial para a rede integrada de atendimento com foco em participação de pacientes na sociedade.

A assistente social Soraya Miter Simon diz que o modelo instituído em 2001 no Brasil tem seus resultados, mas deveria estar em estágio mais adiantado em sua implantação.

Segundo ela, 80% dos CAPSs em funcionamento em Mato Grosso foram instalados após 2002. No país, o número de leitos em hospitais psiquiátricos se reduziu de 90 mil para 33 mil nos últimos 15 anos.  

O quadro que poderia ser melhor, mas que já começa a gerar mudança na percepção da sociedade sobre o assunto.
“Acredito que a questão cultural ainda é muito forte e acaba atrapalhando o desenvolvimento de serviço mais humanitário, mas não dá para falar que é a mesma situação da década de 1980, 1990, por exemplo. É algo que leva tempo”, afirma Soraya.

Já para Morgana, o fator sociocultural “atravessa” a formação de profissionais e o uso de dinheiro público para financiar os atendimentos especializados. “Me dói ouvir dizerem que o trabalho do psicólogo não tem efeito.

É uma área importante de saúde pública e precisa ser levada a sério. Transtornos mentais são doenças com episódios diferentes como qualquer outra doença”, afirma.

O problema afeta até mesmo disponibilização de rede geral da saúde pública. Conforme a Secretaria de Saúde (SES), em Mato Grosso, há resistência de hospitais em abrir atendimento para pessoas com transtornos mentais.

“O Ministério da Saúde pode passar R$ 4 mil por leito em cada hospital para atendimento a pessoas com transtorno mental. Mas os hospitais não recebem, com justificativa de que o paciente causará mais dificuldade no atendimento de outros pacientes”, diz a superintendente de Atenção à Saúde da SES, Ana Carolina Machado Landgraf.

 

Reinaldo Fernandes

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