“O Rosa Náutica estava cheio de gente, muitos turistas falando inglês e francês, e Don Ismael tinha uma mesa reservada perto da janela. Eles bebericaram um Campari enquanto observavam alguns surfistas pegando ondas com seus trajes de borracha. Era uma manhã cinzenta de inverno, com nuvens baixas e pesadas escondendo os penhascos e bandos de gaivotas cuspindo pimenta. Um esquadrão de alcatrazes-do-norte pairava ao nível do mar. O som rítmico das ondas e da ressaca era agradável. O inverno é sombrio em Lima, embora mil vezes preferível ao verão, pensou Rigoberto. Ele pediu um robalo grelhado com salada e avisou seu chefe que não tomaria uma gota de vinho; Ele tinha trabalho a fazer no escritório e não queria passar a tarde bocejando como um crocodilo e se sentindo um sonâmbulo. Pareceu-lhe que Ismael, distraído, nem sequer o ouvia. O que o estava incomodando?”.
Nesse trecho de O Herói Discreto, romance de 2013, Mario Vargas Llosa coloca Don Rigoberto e Don Ismael comendo conchinhas com parmesão, corvina, salada. Pano de fundo para conversa séria, dessas que grandes restaurantes costumam acobertar, espécies de valsa entre garfadas cautelosas e balbucios intensos do salão.
Fora da ficção, o prêmio Nobel, quando em Lima, podia ser visto nesse mesmo píer, aberto no começo dos anos 1980. Pela posição privilegiada, o Rosa Náutica virou hit entre turistas e manteve entre habitués as famílias da elite, as mesmas que lotavam o lugar mais prestigioso da capital peruana na época de sua inauguração.
Com o tempo, é verdade, a cozinha por ali virou coisa secundária, até que há pouco mais de um ano, com a discrição que lhe é marcante, Pedro Miguel Schiaffino assumiu o lugar, renovou os fornecedores e, portanto, os produtos e as receitas. Imagine que sonho: você vai ao Terraço Itália pela vista e come divinamente. Analogamente, é o que o chef logrou!
O Rosa Naútica, claro, segue turístico, servindo milhares de comensais em um só dia, mas garante peixes fresquíssimos de pesca sustentável e clássicos da culinária limenha feitos com rigor e magia – vale para a parihuela (sopa de frutos do mar em cocção impecável), vale para o ceviche (como o de caracóis no vapor ou o de conchas negras e lagostins defumados).
Parênteses feito, voltemos a Vargas Llosa. Nem só em O Herói Discreto, o romancista arequipenho botou a cozinha em pauta. Ele também inaugurou escola de gastronomia e até comparou o ceviche a Machu Picchu.
No El País espanhol escreveu: “Se alguém tivesse me dito há alguns anos que um dia ia ver organizarem-se no exterior viagens turísticas gastronômicas ao Peru, eu não teria acreditado. Mas aconteceu e desconfio que os chupes de camarão, os piqueos, a causa, os ceviches (…) trazem agora ao país tantos turistas como os palácios coloniais e pré-hispânicos de Cusco e as pedras de Machu Picchu”.
O escritor arriscou a criar receitas como os “huevos de Don Mario al jugo”, ovos no pão campesino com molho de carne salteada, uma “iguaria” que o chef Gastón Acurio levou ao menu de seu Tanta.
A relação entre o embaixador da literatura e o embaixador da cozinha peruana, aliás, merece nota. Anos atrás, ele disse que Gastón Acurio seria capaz de tirar o Peru do subdesenvolvimento. Não à toa, ontem, o cozinheiro deixou um belo testemunho em seu perfil no Instagram, no qual conta que conheceu o “gênio rigoroso, corajoso e apaixonado” Don Mario ainda criança.