Há 13 anos, as integrantes do movimento Mães de Maio contam para jornalistas e pesquisadores como seus filhos foram assassinados durante os ataques contra civis e policiais que deixaram entre 264 e 600 mortos, em 2006, no estado de São Paulo.
Os detalhes do que ocorreu nos dias dos crimes foram repassados à exaustão, mas poucas pessoas sabem quem foram os filhos dessas mulheres. Com o objetivo de mostrar que os filhos não eram apenas suspeitos, Débora Silva, mãe de um jovem morto durante os crimes de maio e coordenadora do movimento, decidiu que os nascimentos, infâncias e juventudes deveriam ser relatados em um livro.
São 23 relatos sobre 26 vítimas de policiais e outros agentes do estado no livro "O memorial dos nossos filhos vivos – as vítimas invisíveis da democracia", de 181 páginas.
Integrante do movimento, Vera de Freitas, 67, conta sobre seu filho Mateus, assassinado por dois homens encapuzados, em Santos, litoral de São Paulo, durante os crimes de maio de 2006. A motivação do crime é desconhecida até hoje.
“Terminei a faculdade e engravidei do Mateus. Pra minha família foi a maior alegria. Tanto pro irmão, como pro pai, como pra mim, porque a gente queria mais filhos, não queria só um. […] Eu ia trabalhar e comecei a sentir as dores, fui tê-lo no hospital. E, foi muito bom. Os meus amigos que trabalhavam comigo me mandaram um ramalhete muito lindo de flores. Aquela felicidade”, diz em relato no livro.
“Meu filho tinha uma saúde boa, tinha um corpo bom. Magro. Ele sempre se cuidou. E, de repente, a coisa. A gente sempre com cuidado. Na gestação, mil cuidados…Não tomava um remédio sem falar com o médico. Com medo de que algo pudesse afetar o filho, né? A gente tinha aquela coisa, aquele cuidado. Meu marido sempre foi muito cuidadoso com eles… “olha, cês num vão pra cá, vão pra lá…”. Eles estudavam, dava pra eles ir a pé. Eu pagava a condução. Pegava passe escolar pra eles não ter que vir na avenida. Eu tinha receio, muito carro, eles tivessem brincando e que…A gente tinha aquele medo, aquele cuidado. E, de repente…”, completa.
Além de relatos de mães de vítimas dos crimes de maio, há histórias de filhos assassinados no Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Goiás, Rio de Janeiro, e de uma mãe de Chicago, nos Estados Unidos.
Morto em 2015 em uma suposta troca de tiros com a Polícia Militar, em Mossoró, Rio Grande do Norte, Jacks Douglas Dantas de Moura, 20 anos, era filho único.
“Jacks cresceu e eu o matriculei em cursos de informática e violão, era estudioso!” Depois, ele quis fazer Jiu Jitsu, ainda ganhou umas medalhas. Mas com o tempo, Jacks começou a se desinteressar de tudo. Todos se preocuparam, pois não tinha motivos para ele ficar nesse estado”, conta a mãe Cheila Dantas em seu depoimento no livro.
“Quando trouxeram [o corpo] foi a cena mais triste que já se viu. Aquele rapaz tão cheio de vida, tão bonito, que saiu de casa com sias próprias pernas pra lanchar, voltou sendo carregado sem vida pelos outros dentro de um caixão. Que dor pra uma mãe receber seu filho sem vida, porque alguém resolveu ceifar a vida dele. Ah, meu Deus, que tamanho sofrimento!”
O movimento de Mães de Mogi das Cruzes ou as "Mães Mogianas" também está presente no livro com a história de Breno Santos Vale, morto a tiros em 2015, aos 14 anos. Segundo o setor de homicídios da cidade, entre 2013 e 2015, ao menos 40 pessoas foram baleadas e 24 morreram. Dois policiais militares chegaram a ser presos.
“Breno gostava também de usar a internet para jogar, fazer pesquisas de todos os assuntos. Eu tinha um apego muito grande ao Breno, pois ele era além de meu filho, um grande amigo”, conta Ivani Lira Santos.
Segundo a investigação, Breno morreu baleado quando foi para a calçada tentar pegar sinal do Wi-Fi da casa da tia.
Com o prefácio “Elas estão parindo um novo Brasil!”, de Jaime Amparo Alves, professor na Universidade da Califórnia, o livro vai ser lançado nesta quarta-feira (16) na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, região central de São Paulo.
“O convite aqui é que tenhamos a coragem de defender os ‘nossos’ mortos e os ‘nossos’ mortos devem ser todo/a aquele/a vítima do estado, qualquer que seja sua biografia. O projeto político das mães, portanto, é um convite à criação de uma comunidade moral forjada na dor e na raiva, não na cumplicidade com a lei”, diz Alves.
Com previsão de um segundo volume com relatos sobre mães de desaparecidos e um terceiro, com depoimentos de mães de outros países, Débora diz que o livro é o resultado “da luta pelo útero”.