Na tentativa de dar mais qualidade à vida do filho que tem epilepsia refratária de difícil controle, a estudante de agronomia Priscila Inocente, de 31 anos, trouxe duas vezes para o Brasil, de forma irregular, o canabidiol (CDB) – substância química encontrada na maconha e que, segundo estudos científicos, tem utilidade médica.
Ainda com um pouco de cautela, por acreditar que é preciso avançar mais, ela comemora a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autoriza de maneira controlada a comercialização de medicamento com o componente. Até então, o canabidiol estava na lista dos produtos proscritos, ou seja, proibidos no país.
“Em minuto algum, em segundo algum eu tive medo. Porque é a vida do meu filho. O meu filho não pode esperar a ‘burrocracia’ do nosso país (…). O meu marido falava que eu podia ser presa, e eu podia ser presa, mas queria ver qual juiz que ia me condenar (…). O único medo que eu tinha era de não funcionar”, disse Priscila que mora em Curitiba.
Nas duas vezes que teve acesso ao medicamento, Priscila teve ajuda de uma família que também tem uma criança epiléptica e igualmente decidiu recorrer ao canabidiol. Em uma delas, a avó desta criança trouxe de Portugal um medicamento com CBD escondido em um frasco de shampoo esterilizado.
“Essa é a nossa história, foi o que a gente precisou fazer", diz a mãe. Agora, em referência a decisão da Anvisa, Priscila disse que irá encomendar o medicamento via Correio e que espera, em um futuro não tão distante, comprá-lo nas farmácias do país.
Miguel, o filho de Priscila, tem seis anos e começou a apresentar os primeiros sinais da doença com um ano e dez meses. O diagnóstico ainda não está fechado. Existe a suspeita de que seja uma doença autoimune, porém, a confirmação depende de um mapeamento genético. Como o exame custa entre R$ 9 mil a R$ 15 mil, a família tenta realizá-lo na Universidade de Campinas gratuitamente. Contudo, existe uma fila de espera e uma série de procedimentos a seguir.
A família vendeu o carro para comprar a primeira leva do CDB. Priscila e o marido pagaram cerca de R$ 1.200 por cada seringa do canabidiol pastoso – a unidade é suficiente para duas semanas. Na segunda vez, Priscila optou por uma versão oleosa, que tem maior concentração da substância, e é mais fácil de ingerir. Esta custa aproximadamente R$ 250 e para o Miguel dura, em média, um mês.
Quando iniciou o tratamento com o CBD, em julho de 2014, o garoto tinha em média 30 convulsões diárias, quando estava acordado. Durante o sono, era uma crise a cada cinco ou dez minutos. Hoje, as crises zeraram. “Eu passei três anos sem dormir”, conta a mãe.
Naquela época, ele ingeria remédios convencionais que trouxeram sérios efeitos colaterais. Em virtude de uma das medicações, contou a mãe, Miguel quase teve falência renal e hepática. Outro remédio fez com que a criança parasse de andar, e há um ano e meio Miguel parou de falar. “Nem papai e mamãe”, lamenta Priscila.
Apesar do problema com a fala, segundo Priscila, a melhora do filho foi significativa após o canabidiol. Ele apresentou uma evolução que permitiu que os pais o tirassem da escola especial e o matriculasse em uma escola convencional. "Nós estamos muito felizes com isso, a escola o recebeu com todo o carinho".
De acordo com a mãe, Miguel fez uso de todas as medicações existentes no país para a doença, porém, o quadro só se agravou. “Conforme ele começou a medicação para controlar, a convulsão ficou mais violenta. O que era um tremor, passou a ser uma levantada de braço brusca, depois quando a medicação foi mudando, aumentando, entrando dose maior, o que era só uma levantada de braço mais brusca passou para arremesso no chão. Ele era arremessado no chão, como se alguém o empurrasse pelas costas”, lembrou.
No caso do Miguel, a crise não fazia com que ele se debatesse. O menino, como descreve Priscila, ficava com o corpo completamente duro. “Tem dias que a gente não sabe o que fazer. Tem dias que a gente não aguentava olhar. É um desespero tão grande, uma dor tão grande, que você pensa que vai morrer junto, que você vai morrer de dor. Dói, mesmo. É uma dor física”, disse a mãe.
Diante da angustia de ver a vida do filho em perigo e abastecida de informações sobre tratamentos feitos com canabidiol no exterior, Priscila considerou que valia a pena apostar no tratamento alternativo ainda que originalmente a substância tenha origem na maconha.
“Eu penso assim: a maconha é uma planta, assim como várias outras. Se você usar de forma indiscriminada, é óbvio que você pode ter algum efeito indesejado. Mas eu brinco que nunca vi maconheiro morrer de overdose e nunca vi pessoas passando mal ou tendo problemas por conta da canabis. O problema que a gente sabe é pela questão de fumar e ter problemas respiratórios”, argumentou. Priscila brinca que espera poder comprar na farmácia o canabidiol.
Apoio médico
Priscila precisou convencer a médica de Miguel a aceitar o tratamento com o canabidiol. Ela e o marido estudaram os efeitos da substância, leram artigos científicos e reportagens internacionais sobre o assunto até decidirem que queriam tentar.
Entretanto, incialmente, a médica se posicionou contrária. Priscila insistiu e começou a enviar artigos e outras informações sobre o assunto para a especialista. Um dia, a doutora acabou cedendo e disse que se Priscila conseguisse o medicamento, ela acompanharia o tratamento. Afinal, a médica ainda não poderia prescrever a substância.
Segundo as pesquisas científicas, o canabidiol tem utilidade médica para tratar diversas doenças, entre elas, neurológicas. Alguns exemplos são crises epilépticas, esclerose múltipla, câncer e dores neuropáticas (associadas a doenças que afetam o sistema nervoso central).
Regulamentação no Brasil
Até a decisão de quarta-feira (14), o canabidiol estava inserido na lista de substâncias de uso proscrito. Interessados em importar remédios com a droga tinham que apresentar prescrição médica e uma lista de documentos para a Anvisa, que eram avaliados pelo diretor da agência. Ele dava uma autorização especial, que demorava, em média, uma semana para ser liberada.
Segundo a Anvisa, até terça-feira (13), a agência havia recebido 374 pedidos de importação excepcional do canabidiol. Deste total, 336 foram autorizados, 11 aguardavam análise da área técnica, 20 aguardam o cumprimento de exigência e sete foram arquivados, sendo dois por desistência, três mandados judiciais cumpridos e três por falecimento. Priscila conseguiu a autorização no início de janeiro – quase seis meses após iniciar o tratamento com o filho.
Agora, as empresas interessadas poderão produzir e vender derivados de canabidiol após a obtenção de um registro da Anvisa. A aquisição do produto deverá ocorrer de forma controlada, com a exigência de receita médica de duas vias.
A agência também vai criar uma ordem de serviço em regime especial para regulamentar a importação dos remédios com a substância, que continuará precisando de autorização para ser feita.
A resolução ainda não está pronta. Com ela, deve haver uma flexibilização da importação. "A reclassificação, por si só, em nada altera o quadro de necessidade excepcional de autorização da Anvisa. Os produtos importados não são só compostos de canabidiol", complementou o diretor-presidente da Anvisa, Jaime Oliveira.
Conselho Federal de Medicina
Em dezembro de 2014, o Conselho Federal de Medicina autorizou o uso do canabidiol no tratamento de crianças e adolescentes que sejam resistentes aos tratamentos convencionais. A prescrição é restrita a neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras.
Segundo a entidade, os médicos autorizados a prescrever a substância deverão ser previamente cadastrados em uma plataforma online. Já os pacientes serão acompanhados por meio de relatórios frequentes feitos pelos profissionais.
Pela norma, pacientes ou os responsáveis legais deverão ser informados sobre os riscos e benefícios do uso do canabidiol e, então, assinar o termo de consentimento. Além disso, a decisão do conselho deverá ser revista no prazo de dois anos.
O canabidiol deve ser prescrito a pacientes de epilepsia ou que sofram de convulsões que não tiveram melhoras no quadro clínico após passar por tratamentos convencionais.
De acordo com o conselho, o uso da substância deve ser restrito a crianças e adolescentes menores de 18 anos – mas quem eventualmente use o medicamento antes dessa idade pode continuar o tratamento mesmo após ficar maior de idade.
As doses variam de 2,5 miligramas diários por quilo de peso do paciente a até 25 miligramas, dependendo do caso. A estimativa do conselho é que o limite diário total fique entre 200 miligramas e 300 miligramas por paciente.
Fonte: G1