“Passados 127 anos da abolição da escravatura, em 1888, o país enfrenta uma escravidão tão dura e que explora a níveis absurdos a dignidade humana tanto quanto aquela do Brasil Império”, é o explicou o representante oficial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Antônio Carlos Melo. Extinta na lei e com novas significações, a escravidão atual evoluiu e continua a manter um ciclo de exclusão e exploração dos direitos humanos na zona rural, e mais recentemente nos grandes centros urbanos do país.
São quatro da manhã e o relógio desperta: é hora de ajeitar tudo para deixar as coisas prontas para um dia intenso de trabalho na plantação de cana-de-açúcar. Enquanto Rogério Pinheiro Pereira, 33 anos, prepara a roupa e os acessórios para a lida no campo (como podão, botas, boné e luvas) a comida vai sendo preparada para guardar na marmita. O dia será longo, pois a ‘empreitada’ é terminar de cortar a cana, que será transformada em ração para o gado, em até 15 dias. “Depois disso tenho outro trabalho já preparado para nós, para ‘bater’ o pasto do ‘seu’ João”, conta Pinheiro.
Mesmo sem contrato e carteira assinada, Rogério ainda recebe uma quantia necessária para sobreviver e comprar suas coisas. Mas assim como muitos, engloba uma ‘lista de atenção’ que inclui riscos e vulnerabilidades para o trabalho escravo. O serviço que termina com o sol poente não permite que o trabalhador se recupere do esforço do dia anterior. “O sol é muito quente e nós não paramos de trabalhar até que tenhamos terminado nossa ‘tarefa’. Cada dia parece pior, pois sentimos muitas dores pelo esforço repetido. Mas vamos seguindo mesmo assim”, disse por telefone à redação do Circuito Mato Grosso.
Com ensino fundamental, negro e vindo do interior de Goiás, ele também faz parte de um grupo em risco social, como afirmou o representante da OIT. “Eles são na maioria analfabetos ou pessoas que evadiram cedo da escola, negros ou pardos, sem qualificação e trabalhando na informalidade em sua maioria”, explicou. Segundo Antônio, a única diferença entre Rogério e os escravos do século 19 são os grilhões (aparelhos usados para manter presos os escravos) e a lei que aboliu o ser humano como mercadoria: “Mas as chagas causadas para essas pessoas é tão perversa quanto aquela que acontecia nos séculos passados. A pessoa é coisificada a tão alto grau que encontramos vítimas que eram tratadas pior que o gado, pois eram proibidas de beber água limpa antes dos bois”, comentou o coordenador da OIT no Brasil.
Gerações de pessoas passam por esse ciclo de exploração e vulnerabilidade que continua indefinidamente no interior de fazendas e de casas, como explicou Antônio. “Lá no interior das casas e das fazendas, onde a lei constitucional protege a inviolabilidade do lar, é que estão as maiores vítimas do trabalho análogo à escravidão. Por conta disso, sem que haja denúncias e ação policial e judicial, não podemos fiscalizar o interior das casas”, comentou. Esse motivo, de acordo com Antônio, é uma das maiores dificuldades dos órgãos fiscalizadores para encontrar as vítimas e pessoas vulneráveis à exploração do trabalho.
Conforme o relatório da OIT, o trabalho forçado no mundo tem duas características em comum: o uso da coação e a negação da liberdade. No âmbito brasileiro, a definição de trabalho escravo é resultado de quatro formas de exploração:
Servidão por dívida – quando o empregador instala uma ‘venda’ que se vale de preços abusivos para aquisição de coisas básicas como alimentação e até ferramentas de trabalho. Nesse caso, o empregador anota em uma caderneta a dívida do trabalhador com transporte, alimentação, vestuário, aluguel etc., fazendo como que a vítima nunca consiga quitar totalmente seu débito para conseguir sair do vínculo empregatício.
Trabalho forçado
Esse gênero de exploração acontece muito no interior das fazendas onde o trabalhador é obrigado a trabalhar sem poder sair do local. Seja por ameaça, por falta de transporte, ou falta de condições, essa vítima se vê impossibilitada de procurar saídas e a única coisa que lhe resta fazer é trabalhar para poder comer. Em casos extremos, o uso de coação física é usada, como acontece com vítimas da exploração sexual e imigrantes de outros países que desconhecem a língua, ou por ameaças de capatazes em fazendas guardadas com armas.
Condições degradantes – O trabalhador é exposto a instalações de lona ou sem condições mínimas de higiene e banheiros, alimentação inadequada e parca, além da falta de Equipamentos de Segurança individual (EPI) e segurança para trabalhar. Há casos de total insalubridade nos alojamentos e nas instalações de trabalho, a ponto de o local oferecer sérios riscos à saúde das vítimas.
Jornada exaustiva
O trabalhador é exposto a uma carga muito grande de trabalho, sem que haja a possibilidade de descanso e recuperação. São jornadas que iniciam na madrugada e se estendem até o início da noite. As vítimas, continuamente expostas a serviços duros, na lida diária, sol quente e esforço físico, chegam a morrer por conta da exaustão.
Apesar de ser o meio rural o local onde mais foram encontrados vítimas – 18 pontos em 2014, segundo dados do MPT –, o trabalho escravo não existe somente ali: ocorre também nas áreas urbanas, porém em menor intensidade. O trabalho escravo urbano é de outra natureza.
No Brasil, os principais casos de escravidão urbana ocorrem na região metropolitana de São Paulo, onde os imigrantes ilegais são predominantemente latino-americanos, sobretudo os bolivianos, e mais recentemente os asiáticos, que trabalham dezenas de horas diárias, sem folga e com baixíssimos salários, geralmente em oficinas de costura. Uma das soluções para essa situação é a regularização desses imigrantes e do seu trabalho.
“A escravidão no Brasil foi extinta oficialmente em 13 de maio de 1888. Todavia, em 1995 o governo brasileiro admitiu a existência de condições de trabalho análogas à escravidão. A erradicação do trabalho escravo passa pelo cumprimento das leis existentes, porém isso não tem sido suficiente para acabar com esse flagelo social”, disse o procurador do Ministério Público do Trabalho, Renan Kalil. Segundo ele, mesmo com aplicação de multas, corte de crédito rural ao agropecuarista infrator ou de apreensões das mercadorias nas oficinas de costura, “utilizar o trabalho escravo é – pasmem! – um bom negócio para muitos fazendeiros e empresários porque barateia os custos da mão de obra. Quando flagrados, os infratores pagam os direitos trabalhistas que haviam sonegado aos trabalhadores e nada mais acontece”, disse Antônio Carlos.
Combate ao trabalho escravo
Para tentar controlar esse risco social da escravidão há três formas de ações que os órgãos de fiscalização usam: por meio da repressão, prevenção e atendimento às vítimas da exploração do trabalho escravo. “Por meio do Ministério Publico do Trabalho, Ministério Público Estadual e Federal, Polícia e denúncias nós podemos ir até os locais suspeitos e intervir e punir com multas e publicidade dos casos. Há hoje em Mato Grosso uma ‘lista suja’ de 19 empregadores que usavam mão de obra escrava. A maioria está ligada à agropecuária e um dos casos à construção civil urbana”, contou Kalil. Ainda conforme o procurador, o trabalho de inteligência precisa ser aperfeiçoado no estado, pois encontrar os trabalhadores expostos a formas degradantes é difícil.
“Há táticas que ocultam os olhares dos fiscais do trabalho como, por exemplo, em um dos casos apurados pelo MPT os trabalhadores que estavam na parte da frente da fazenda usavam uniformes, EPIs e tinham carteira assinada. À medida que os fiscais adentraram a propriedade, foram constatados os locais onde não havia o mínimo de condições para trabalhar”, contou o procurador. “Isso também acontece muito com empregados domésticos, que com o selo de que ‘são da família’ são expostas a trabalhos contínuos dentro das residências sem direito a férias, descanso ou remuneração”, emendou Kalil.
Ação Integrada
O programa piloto mato-grossense de combate à exploração do trabalho escravo está sendo considerado um exemplo nacional e para a OIT. A primeira fase do Projeto foi implementada em 2009, por iniciativa da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso, da Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região (Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso) e da Fundação Uniselva da UFMT.
O projeto viabiliza uma série de articulações com entidades públicas, privadas e da sociedade civil para discutir as variáveis que levam o trabalhador e sua família à condição de vulnerabilidade e ao trabalho escravo, e presta atenção às vítimas e suas famílias, além de identificar e estabelecer parcerias em prol de uma ação coordenada de combate ao trabalho escravo.
O desenvolvimento das experiências foi conduzido pela Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região, Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso (SRTE-MT) e Fundação Uniselva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com o apoio do Sistema S, do Núcleo de Pesquisa em História (NPH/UFMT) e do escritório da OIT no Brasil e da Secretaria Estadual do Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (Setecs-MT).
O Projeto continua ativo, com possibilidade de ser estendido a outros estados do Brasil. A iniciativa oferece elementos confiáveis para pensar futuras ações que visem impedir a reincidência dos trabalhadores resgatados em situações de trabalho análogas à escravidão, bem como possibilita o rompimento do ciclo perverso de exploração desses trabalhadores, privados de benefícios da cidadania e, consequentemente, da dignidade humana.
As ações do programa se concentraram em romper o ciclo da escravidão contemporânea criando condições efetivas de reinserção social e profissional aos trabalhadores resgatados e vulneráveis ao trabalho escravo, por meio dos seguintes pilares: acolhimento/ acompanhamento psicossocial contínuo; formação cidadã; elevação educacional; qualificação profissional; reinserção em políticas públicas de emprego e renda ou contratação direta por empresas.
Os resultados obtidos pela Ação devolveram aos beneficiários do projeto sua existência legal e documental, além de ter possibilitado o resgate da dignidade, autoestima e a retomada de projetos de vida interrompidos pela escravidão contemporânea. Como consequência, o círculo vicioso da escravidão contemporânea foi rompido.