Opinião

Linha 29

A vida inteira tive pavor de homem me mandando. Já bastava meu pai. Desde criança era um inferno. Manda fazer isso. Manda pegar aquilo. Senta no colo do papai. Não fala pra sua mãe que ela morre de inveja. Eu sempre achei que meu pai queria me comer. Acho que até desejei isso. Não sou dessas que gostam de pudor. Sou daquelas que engolem. Que se masturbam em banheiro de avião. Deus pra mim é um lance de mídia. Um lance de marketing. Coisa de sul-americano cucaracha subdesenvolvido. Deve ser por isso que mudei pra Londres. Pra ser livre. Para ficar longe do meu pai.

– Sai daqui, pai!!! Sai do meu quarto agora!!!
 Sai!!! Sai!!!

Mas não. Meu pai não. Nunca encostou um dedo. Nunca tentou me aliciar. Nunca fez nada de errado comigo. Nem surra à toa o filho da puta me dava. Meu pai era foda. Meu pai era pai. Com ele era no fio do bigode. O justo, o justo. Me obrigava a tirar notas boas, me obrigou a acabar a faculdade de medicina na Federal.

– Faça o que quiseres. A vida é sua. Só não tenho como te ajudar financeiramente. Mas estarei aqui caso precisar.

Fazia 5 anos que havia visto ele pela última vez. E essa, talvez, era a última frase que havia escutado dele. Londres, você sabe como é: uma cidade vampira. Tem muita coisa pra fazer, muita coisa pra aprender, muita coisa pra cheirar. Quando a gente menos espera, a gente já faz parte de Londres. Como papel de parede. Nos transformamos em parte da cidade, onde as cores dos cabelos substituem a falta de moral, onde podemos viver como ratos e arrotamos como lordes. Porque Londres é igualitária. Todo mundo veste a mesma coisa, bebe a mesma coisa, se droga com a mesma coisa. É claro que muitos não precisam morar num quarto com outra pessoa como eu, ou num apartamento de subúrbio na Zona 3, é claro que nem todo mundo vai ter carro do ano ou filhos numa escola boa, mas todos fritamos no verão no mesmo HydePark.

– Fiu, fiu.

No meio da selva de pensamentos, esse assovio fez voar minha atenção. Olho para os lados, sem prestar muita atenção.

– Aqui… ó… Quanto é o programa, menina?

Fiquei louca de raiva. Odeio ter minhas viagens de mescalina interrompidas. Não se pode mais ficar parada numa esquina na tranquilidade, como antigamente.

– Puta que pariu. Brasileiro… além de pobre, deve ter pau grande. São 500 pounds pra você.

– Travesti maluca. Essa sua bunda feia aí não vale 99 pences.

Ele arranca cantando o pneu do seu carro Wagon modelo 1997 pelas ruas de Manor House. Odeio esses brasileiros. Vem pra Londra trabalhar de pedreiro e assistente de cozinha e acham que são grande coisa. Desde que troquei meu nome de Carlos pra Jessica, valorizo, e muito, os lances da família. Penso em um dia pedir desculpa pra todos eles. Mas também talvez seja tarde: o filho da puta do meu pai morreu ontem à tarde.
 

– Ah… fuck you mother fucker!!! I hate Brazil!!!

 O 29 está passando. Ergo o braço. Amanhã trabalho mais.

João Manteufel Jr.

About Author

Mais conhecido como João Gordo, ele é um dos publicitários mais premiados de Cuiabá e escreve semanalmente a coluna Caldo Cultural no Circuito Mato Grosso.

Você também pode se interessar

Opinião

Dos Pampas ao Chaco

E, assim, retorno  à querência, campeando recuerdos como diz amúsica da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.
Opinião

Um caminho para o sucesso

Os ambientes de trabalho estão cheios de “puxa-sacos”, que acreditam que quem nos promove na carreira é o dono do