A violência religiosa tem tomado proporções dentro das diferentes crenças e gerado uma luta diária contra atos que vão desde palavras até a destruição de igrejas, terreiros e templos em todo o Brasil. Em Mato Grosso, casos já foram registrados como o que aconteceu em 2015, quando um terreiro localizado no bairro Santa Laura II foi incendiado.
Sobre o assunto, o Circuito Mato Grosso, nesta edição, na Entrevista da Semana, falou com três líderes religiosos: Padre Deusdédit Monge, vigário geral da Arquidiocese de Cuiabá, Ricardo De Oxaguian, pai pequeno do Centro Espírita da Virgem da Imaculada Conceição e o Mestre Karaiman Cristian Siqueira, mestre dirigente da Casa de Oração Caboclo Tupinambá e presidente fundador do Movimento Umbanda de Cuiabá (MUC) que falam de diferentes aspectos que levam as pessoas a praticarem atos de intolerância e de que forma isso está sendo tratado.
Confira abaixo:
Padre Deusdédit Monge é padre diocesano da Arquidiocese de Cuiabá, vigário geral da Arquidiocese de Cuiabá e pároco da Paróquia Imaculado Coração de Maria. Ele participa de um grupo de cristãos que se reúnem a cada dois meses para debaterem pontos em comum de suas crenças e estabelecerem ações conjuntas como a Pastoral da Criança.
Circuito Mato Grosso: Como o tema da intolerância religiosa é tratado na Igreja Católica?
Padre Deusdédit Monge: Desde o Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, convocado no dia 25 de dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII o tema é debatido na Igreja Católica. Foram estabelecidos os diálogos “Ecumenium” e o inter-religioso. O primeiro envolve as igrejas cristãs, sejam elas as igrejas históricas, como a Luterana e todas as outras. O ecumenismo é uma exigência do próprio evangelho. Jesus disse “deixa, Pai, que todos sejam um para que todo mundo creia” na oração sacerdotal para a unidade dos cristãos da Terra. O ecumenismo se dá nessa linha de interação e diálogo com todas as igrejas que professam a fé em Jesus. São muitos pontos em comum e poucos os que nos desunem. O que nos une é a fé na Bíblia, na trindade e em Jesus. Essa proposta existe desde o Concílio, porém ganhou mais força com o Papa Francisco, que é muito em prol do diálogo.
CMT: E como é o a relação com as crenças não cristãs?
PDM: O diálogo inter-religioso é no sentido de como a Igreja Católica deve se posicionar com as religiões e igrejas que não professam a fé em Jesus, no caso dos budistas, mulçumanos, o espiritismo e, aqui no Brasil, as crenças afro-brasileiras. Esse diálogo tem como base o entendimento de que todas as pessoas são filhos e filhas amadas de Deus. E acima das diferenças ideológicas, partidárias e corporativas, nós somos filhos do mesmo pai e devemos amar uns aos outros. Temos que criar diálogo com essas pessoas. Diálogo para amar, e você só consegue amar quando conversa e conhece o outro.
CMT: Existem eventos específicos para que esses diálogos se estabeleçam?
PDM: Temos muitos encontros. Agora será celebração do Cuiabá 300 anos e vamos participar com todas as religiões, afinal a cidade é de todos. Tolerância significa ter caridade para com as pessoas e respeitá-la como cada um é. Igual em casa, temos que tolerar tudo e conviver com as diferenças. Hoje, temos muita dificuldade em conviver com quem é diferente de nós, e precisamos buscar a riqueza da unidade em todas as pessoas. Esse sonho de paz é o que Jesus quer no mundo. É nessa linha que nós trabalhamos a tolerância religiosa, respeitar as pessoas e aprender uns com os outros. Não há necessidade de renúncia para tolerar as diferenças. Não existe mais essa coisa de campeonato das igrejas que têm mais fiéis, isso é proselitismo, nós queremos estar unidos pela causa da paz e da não violência. Ano que vem a Campanha da Fraternidade no Brasil irá abordar o tema da violência. Nós das igrejas cristãs temos que nos unir pela paz e contra a violência. É para isso que estamos reunidos. Na parte da ação pela vida, paz e justiça.
CMT: Como a igreja Católica lida quando suas crenças são alvo de intolerância, como no caso das imagens de Nossa Senhora Aparecida que foram vandalizadas por membros de outras igrejas?
PDM: Em geral esse tipo de pessoa não representa toda a igreja, eles são sempre uma minoria de fanáticos. Se formos analisarmos na raiz, nunca é uma ação coordenada com apoio das lideranças. Eles não incentivam esse tipo de ação. Esse é tipicamente um caso de intolerância religiosa que tem o fundamentalismo como base. Temos que ter muito cuidado com esse fanatismo religioso. O Alcorão é um texto muito lindo, poético, que fala da fé, do amor e da paz, mas tem gente que mistura as coisas e cria esse tipo de fanatismo na hora de interpretar os textos sagrados, o que resulta em tanta guerra e incompreensão. Não há mais espaço no mundo para essa intolerância religiosa, precisamos superar.
CMT: Aqui em Mato Grosso existem casos de intolerância?
PDM: Contra a Igreja Católica não. Aqui não temos muito problemas de convívio, sempre estamos fazendo culto ecumênico, até com nossos irmãos do candomblé e da umbanda. Mas existem ainda casos em alguns lugares no Rio de Janeiro em que esse tipo de situação é mais forte.
CMT: Com a entrada do Papa Francisco as ações inter-religiosas ganharam mais espaço?
PDM: Sim, sem dúvida, ele é muito pelo diálogo e desde o primeiro momento esteve entre judeus e árabes e esteve em Roma reunido com muitos rabinos judeus. Ele nos dá sempre um grande exemplo de ser um homem do diálogo desde o primeiro documento que lançou, o “Evangelii Gaudium”, ou a Alegria do Evangelho. Com o pluralismo que vivemos hoje, o mundo é o diálogo e sem ele não vivemos.
CMT: O senhor então é favorável a ações como a lavagem das escadas da igreja de São Benedito promovida pela comunidade das religiões afrodescendentes de Cuiabá?
PDM: Foi uma iniciativa do pároco de lá, a intenção era estabelecer essa paz entre as igrejas. Eles frequentam muito ali, afinal São Benedito é o santo de devoção da comunidade afrodescendente da cidade. A proposta é esta: que existam cada vez mais iniciativas como essa de abertura e diálogo. Não podemos ser mais uma comunidade sectária, fundamentalista e fechada, nós queremos ser a igreja do diálogo para a paz.
Ricardo De Oxaguian, pai pequeno do Centro Espírita da Virgem da Imaculada Conceição, localizada no bairro Santa Laura II, em Cuiabá, relembra o caso de intolerância registrado m 2015, quando vândalos entraram no terreiro e incendiaram o local. O crime acabou resultando na queima de parte do acervo material da Casa, que é do segmento da umbanda e teve em sete menos pelo menos 30 invasões registradas antes da última que acabou resultando no incêndio.
Circuito Mato Grosso: Como vocês chegaram ao fato de que o centro havia sofrido o ataque por intolerância religiosa?
Ricardo de Oxaguian: Nós já temos 30 anos de fundação e há dois anos tivemos esse registro de intolerância. Até então nós considerávamos apenas furtos, pois quando entravam no terreiro levavam botijão de gás, bebidas, comida, essas coisas, e não havia ataques diretamente aos nossos santos e imagens que fazem parte dos dogmas da religião. Em 2015, atearam fogo no nosso terreiro e daí em diante nós consideramos como intolerância. Na invasão, eles quebraram todas as imagens, atearam fogo, destruíram a parte de cima do alojamento, fizeram o estrago. Então aí veio para nós a questão da intolerância que nada mais é do que a discriminação que pode ser feita através de atitudes agressivas, ofensivas e que marcam.
CMT: Por que vocês acreditam que tenha acontecido esse ato de intolerância?
RO: Acreditamos que o que leva a essa questão é a falta de fé. A pessoa não tem fé, independente da religião, a pessoa que não tem fé faz com que ela agrida quem tem fé, quem está sempre caminhando e auxiliando o próximo.
CMT: Chegaram a descobrir quem cometeu o ato?
RO: Na época teve sim o reconhecimento da pessoa que fez. Ele acabou falecendo e era lá do bairro. Ele passava informações para o pessoal que invadiu o terreiro. Nunca tinha acontecido um assalto na proporção deste que aconteceu em 2015, quando se aproveitou para, além do roubo, praticar a destruição do nosso centro.
CMT: Após o ataque, vocês reconstruíram o centro no mesmo local?
RO: Ele continua no mesmo bairro e no mesmo local com a proteção dos nossos guias, orixás, amigos e comunidade. Nós o refizemos através de doações e promoções que realizamos para arrecadar fundos.
CMT: Vocês têm medo que aconteça outro ataque?
RO: O medo existe, só que a gente não se intimida. A gente continua trabalhando, não enfoca nessa questão e foca no nosso trabalho. Graças a Deus, de lá para cá não aconteceu nenhum ataque.
CMT: Acredita que está havendo um retrocesso na luta contra a intolerância?
RO: Não é que estejamos vivendo um retrocesso, na verdade as coisas vão evoluindo. Tudo já existia, tudo existe e tudo existirá. Com a mudança que vem ocorrendo no universo – e isso eu estou falando dentro da minha religião – tudo de podre está vindo para a Terra para que depois haja um limpa. Isso não só na intolerância religiosa, mas em todos os tipos de intolerância, preconceito, violência, para que depois seja purificada. Para que a gente tenha a visão do ajudar o próximo.
À frente do Movimento Umbanda em Cuiabá, Mestre Karaiman Cristian Siqueira, mestre dirigente da Casa de Oração Caboclo Tupinambá, tem buscado, através de ações, levar à população um pouco mais de conhecimento sobre a religião da Umbanda. No último dia 15 de novembro, um ato reuniu na Praça 8 de Abril praticantes e curiosos para uma tarde de debates e apresentações. O encontro acontece há cinco anos e vem se tornando ferramenta importante na luta contra a intolerância.
Circuito Mato Grosso: Como é o Movimento Umbanda em Cuiabá?
Cristian Siqueira: O movimento trabalha muito em cima da divulgação daquilo que é a prática religiosa porque a gente acredita que a partir do momento que essa sociedade conceber a realidade, ela certamente vai olhar diferente. Há cinco anos não havia nenhuma ação pública aqui em Cuiabá voltada à intolerância religiosa, ao preconceito religioso, e aí decidimos fazer o primeiro encontro umbandista em Cuiabá e tivemos uma resposta muito boa por parte dos umbandistas e candomblecistas que participaram. Ele é importante, pois a intolerância é fruto da falta de conhecimento. Jesus, um exemplo de líder, já falava que a fé vem pelo conhecer, então a ausência de fé vem exatamente pelo desconhecer.
CMT: Como foi esse evento?
CS: Nós nos reunimos nesse espaço público, bem localizado, para tentar um contato da sociedade com aquilo que é a umbanda de verdade. Existe um total desconhecimento que faz com que as pessoas acreditem que o culto religioso mata, faz mal às pessoas, e na verdade é uma religião como qualquer outra.
CMT: Com os movimentos realizados ao longo dos anos, acredita que estão recebendo uma visibilidade maior e com isso o respeito?
CS: Completamente. Existem outros eventos voltados à intolerância religiosa, só que na atualidade o encontro umbandista realizado pelo MUC é o mais longo. Nesse sentido, inquestionavelmente, pois temos espaços para falar em canais de TV que nunca tinham dado espaço para a gente falar antes, meios escritos, sites, jornais etc. Então temos um espaço para levar a discussão e a gente vê que está melhorando muito. E temos também muito da consciência do religioso porque os cultos afro-religiosos têm uma história muito fechada, então no início eles sofreram com a não aceitação por ser negro, escravo, pobre, então era tida como baixo espiritismo. Hoje o umbandista já fala que é da umbanda, já anda de branco, usa guia no pescoço, ações que não havia no passado. Está havendo um empoderamento interno da comunidade.