Naquele dia 9 de dezembro, a mensagem de Adriana por WhatsApp levou-me de imediato ao estado de languidez. Celular de lado. Corpo em renunciação. Anos 80. Memórias da aldeia Sapezal. Terra Indígena Nambiquara, ladeada pela Rodovia Marechal Rondon e pelos rios Juína e 12 de Outubro.
José Roberto Nambiquara. Do grupo Halotesu, aquele que pertence ao cerrado. De farta cabeleira. Corpo elevado. Que soa forte. Preclaro. Paulina, a bela mulher. Roque e Rosina, os filhos de olhar sereno e fala pacata. Volto ao noticiado sucinto. Estéril. A decretar a morte esperada. Presumida.
Memórias do trator. Da caminhonete Toyota Bandeirante 4×4, a diesel. Guiados por José Roberto, ocupante do cargo de Tratorista da Funai. Apontamentos mentais de viagens na carroceria apilhada de gente. De cestos-cargueiros. De cachorros. De gritos e de gargalhadas estridentes, efeitos dos solavancos bruscos. Violentos.
José Roberto Nambiquara na direção do trator.
Fonte: Aconteceu. Especial 17. CEDI, p. 309.
Foto: Vincent Carelli, 1986.
Em texto de aplicativo, aquelas poucas palavras de Adriana, instantâneas, ainda que decretassem uma morte anunciada, ressonaram um tempo longo, quase duradouro. Nessa linha do tempo, o recorte: o curso de Mecânica de Automóvel. Era perfeito para o aperfeiçoamento do autodidatismo de José Roberto, que já possuía um bom compêndio de mecânica em sua cabeça.
Pela Rádio Nacional da Amazônia, canal de comunicação popular que oferece importante ligação entre as comunidades da Amazônia, tomei conhecimento do curso que capacitaria o Halotesu nos trabalhos de montagem, desmontagem, manutenção e regulagem dos componentes mecânicos do trator e da caminhonete Toyota. Sapezal, muito distante de uma oficina mecânica, era tudo o que precisávamos!
Assim, José Roberto estava matriculado no Instituto Universal Brasileiro. A proposta consistiu em eu fazer a leitura dos livros, que chegariam aos correios da cidade de Vilhena, Rondônia, a uns cento e tantos quilômetros da aldeia Sapezal.
Eu e José Roberto passamos a estudar mecânica de automóveis. As “aulas” ocorriam de acordo com nossa disponibilidade. Àquela época, eu nada entendia da língua Nambiquara e ele falava, lia e escrevia um português que pouco atingia os conteúdos dos livros. Minha missão foi a de fazer a leitura e “traduzir” para a língua portuguesa de José Roberto.
As “aulas” de mecânica de automóveis transcorreram durante meses. Não me lembro até que livro chegamos. Mas, os conteúdos se tornaram complexos a ponto de eu não entender o que lia, ainda que José Roberto conhecesse muito do que se tratava: suspensão, anéis de trava, rebites, engrenagens, bomba de óleo, ignição, função do carburador, sistema de combustível, embreagem e muito mais.
O curso de Mecânica de Automóveis foi deixado para trás. Nem mesmo sei dizer se acrescentou alguma coisa aos conhecimentos de José Roberto, ainda que ele afirmasse positivamente quando eu o perguntava. Sob a direção e os cuidados do indígena, as viagens de trator e de caminhonete Toyota continuaram a percorrer as aldeias e portos pesqueiros da Terra Indígena Nambiquara. Solavancos, cheiro de diesel, corpos apertados com a superlotação, risos, falação, resmungos, latidos dos cães de estimação me chegaram naquela breve mensagem de WhatsApp de Adriana.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.