Cidades

Jorge Terra: “Muitos negros pensam: ‘Esse lugar não é para mim'”

Foto: Fernando Gomes

Por Letícia Duarte 

Ao chegar para uma audiência, em 2011, no Foro da Tristeza, em Porto Alegre (RS), o procurador do Estado Jorge Terra abaixou o vidro da Zafira que dirigia para pedir informações.

— Sou da procuradoria. Tem algum lugar em que eu possa deixar o carro? — perguntou à guarda.

A mulher se abaixou, cruzou o olhar sobre ele, que vestia terno e gravata, e falou com a estagiária que o acompanhava, sentada no banco do passageiro, trajando jeans e camiseta.

— A senhora é procuradora?

A jovem branca olhou para o chefe, constrangida, e não respondeu. Depois, perguntou a ele:

— Por que ela achava que eu era procuradora?

— Ela não sabia se tu era, mas tinha certeza que eu não era — respondeu Terra, habituado a enfrentar o preconceito racial.

Aos 49 anos, Terra costuma se apresentar como "50% dos negros" da Procuradoria-Geral do Estado. Além dele, havia até a semana passada apenas um outro negro entre os 400 procuradores. Em cinco décadas, ele foi o terceiro negro a ingressar na PGE, em março de 2000, numa época anterior à criação do sistema de cotas (outros dois procuradores agora estão em estágio de preparação, os primeiros a entrarem por cotas). Apesar de ser minoria estatística, não se sente só. Acha que representa a maioria ausente e silenciada:

— Sei que estou aqui não só por mim, pela minha família. Tenho plena consciência disso. Não tenho o direito de errar. Isso me serve como um estímulo.

Representante da PGE junto à Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos, Terra se dedica à advocacia preventiva para evitar danos aos Estado. Antes de assumir a função, orgulha-se de ter ganho uma ação judicial que condenou uma companhia de bebidas a devolver R$ 35 milhões aos cofres públicos em impostos devidos. Mas nem o cargo nem as realizações alcançadas o blindam para a discriminação impregnada na sociedade.

A percepção de que deveria se engajar para combatê-la foi reforçada cinco anos atrás, quando estacionou sua caminhonete para deixar a sobrinha na escola, uma instituição particular no bairro Glória. Ao retornar, foi surpreendido por um pedinte negro batendo na janela lateral da Blazer. Hesitou entre abrir ou não, imaginando que ele iria lhe pedir alguns trocados. Mas baixou o vidro.

— Ah, dessa eu gostei — começou o homem. — Tá vendo aqueles dois lá do outro lado da rua? Eles pensavam que tu ia roubar o carro! E o carro é teu! — festejou, feliz por ver um negro bem-sucedido.

A experiência fez Terra pensar na responsabilidade que tinha para transformar não só a sua realidade, mas a daqueles que seguem à margem.

— Eu poderia estar feliz pela minha vida, por frequentar os lugares que eu frequentava, ter uma vida igual à dos meus colegas. Mas percebi que eu tinha um papel diferente. Comecei a militar quando me senti forte o bastante para fazê-lo — analisa.

Sua carreira é motivo de orgulho, mas é nos primeiros anos de vida, no bairro Azenha, na Capital, que ele localiza o momento mais marcante de superação. Foi ainda no jardim de infância, quando descobriu que a cor de sua pele provocava reações. Os coleguinhas não deixavam que ele e os outros três negros da turma participassem das brincadeiras. Depois de uma briga com o líder da panelinha que o excluía, acabou de castigo. Mas não deixou que aquela má experiência definisse seu destino. Quando chegou o convite para toda turma participar da festa de aniversário do menino com quem havia brigado, decidiu comparecer. Ao dar o passo de aproximação, conseguiu quebrar o estigma que os distanciava.

— A partir daquele dia, todos começaram a poder brincar juntos — conta Terra.

Emocionado com a lembrança, embarga a voz.

— Falei que eu sou chorão… — diz, contendo as lágrimas. Ganhando fôlego, termina a frase: — Porque na verdade a luta nunca termina. E isso que é chato. Eu achava que minha filha não teria que passar por isso, mas teve — lamenta Terra, que é casado com a professora Denise, 49 anos, e pais de dois filhos, Victória, 12, e Pedro, oito.

Pouco depois daquela festa, veio o dia que ele define como "o mais feliz da sua vida":

— Foi o dia em que minha mãe me deu dinheiro para comprar um pão cervejinha e uma Coca-Cola caçulinha, que era o que eles (os colegas de aula) faziam. Naquele dia eu me tornei um igual.

Não que seus pais fossem pobres. A mãe sustentava os dois filhos com a pensão deixada pelo marido. Sargento da Brigada Militar em Três Passos, o pai de Terra morreu de aneurisma quando o menino tinha três anos e meio e sua irmã, sete — o que marcou o retorno da família a Porto Alegre.

— Tem coisas que tu simplesmente não pede. Não tínhamos privações, mas eu sabia quais seriam os limites que minha mãe poderia enfrentar — diz.

Olhando em retrospectiva sua própria trajetória, ele está convencido de que a baixa inserção de negros nos espaços de poder não é apenas uma questão de acesso, mas de autoestima.

— Muitos negros pensam: "Esse lugar não é para mim", "isso aqui já está bom". É como a síndrome de Estocolmo, em que a vítima vê o sequestrador como o forte, o bom — ele compara.

— Passamos 300 anos à mercê do outro durante a escravidão, e isso criou a percepção íntima de que o bonito é o outro, o capaz é o outro. Em 128 anos de liberdade ainda não conseguimos desconstruir algumas coisas — complementa Terra.

Para quebrar essa barreira psicológica, o exemplo é decisivo. No seu caso, ele acredita que três lições aprendidas em casa o ajudaram a chegar onde chegou. Primeiro, os conselhos da vó:

— Ela sempre dizia que ninguém é melhor ou pior do que eu. Com ela, aprendi essa noção de igualdade.

Depois, veio a mãe, que o ensinava: cada vez que voltava da padaria, tinha que trazer cada centavo de troco. E assim aprendeu o conceito de honestidade. A terceira lição foram as palavras do avô, dizendo que, se quisesse ser um bom jogador de futebol, precisava aprender a chutar com os dois pés.

— Ele ficava me treinando, era proibido chutar com o pé direito. E aí eu aprendi o que é dedicação.

Terra sonhava em ser jogador de futebol, seguindo os passos do ídolo Falcão, mas foi pelo basquete que veio a redenção. Não se tornou um astro, mas ganhou uma bolsa de estudos no IPA durante o Ensino Médio. Com livros emprestados por um vizinho e um cursinho pré-vestibular pago pelo padrasto, conseguiu passar em Direito na UFRGS e a se preparar para fazer concursos. Lembra que um dia, quando estava indo fazer um concurso em Alvorada, comentou com a mãe que só havia quatro vagas.

— Por que tu vai? — ela desencorajou.

Jorge foi, e passou em terceiro lugar. Em palestras para o público negro, percebe que outros jovens passam pelo que passou.

— Às vezes, tem oferta de emprego e a mãe diz para o filho que aquilo não é para ele. Não é que a mãe queira minar a autoestima, mas ela quer proteger o filho da dor. A mãe não tem referências de alguém que foi e que conseguiu. Mas o sofrimento também é uma forma de aprender — acredita.

Entre suas atividades atuais, Terra coordena a Subcomissão da Verdade sobre a Escravidão Negra, ligada à OAB gaúcha. Um dos objetivos, explica, é identificar problemas de hoje, buscar as raízes históricas e encontrar caminhos de superação.

— Por exemplo: as pessoas estão horrorizadas com a taxa de desemprego de 10%. Só que esse já era o índice de desemprego de 2012 de negros e negras, e isso é uma coisa invisível. Então propusemos a criação de um grupo de trabalho, com participação de entidades como Fiergs, Fecomércio, Federasul, para fazer um diagnóstico e propostas de combate.

Apesar das dificuldades, Terra acredita que não faltam leis, e sim uma mudança de atitude.

— Tivemos a lei do sexagenário. Nos ensinam na escola que, a partir de 1885, quem completasse 60 anos seria liberto, trabalhando mais três anos para indenizar o senhor. Mas o brasileiro não escravizado só conseguiu chegar aos 60 entre 1970 e 1980, cem anos depois. Então aquele que conseguisse chegar aos 60 anos merecia não só a liberdade, merecia uma medalha! — ironiza.

Terra lembra que a expressão "para inglês ver" vem do período pré-abolicionista — quando o Brasil começou a editar leis para agradar os britânicos, que, interessados em garantir mercado para sua indústria, começaram a forçar as nações a abolirem a escravidão. As leis vieram, os direitos, não. Hoje, o mesmo acontece com o Estatuto da Igualdade Racial.

— O estatuto é de 2010, mas não tem nenhum artigo cumprido. É para negro ver — lamenta Terra. — Tem coisas que só os negros sentem, só os negros sabem. Talvez por isso que a lei de combate ao racismo não funcione. A lei tem 23 artigos, racismo é crime, mas ninguém vai deixar de te atender dizendo "você é negro". Vai dizer: "Tem que fazer reserva, tem que marcar antes". E aí a pessoa vai embora. E não volta de novo. E como se prova isso? Não é à toa que 70% das pessoas que respondem por crimes raciais são absolvidas, isso quando o processo vai adiante.

Fonte: *ZERO HORA

 

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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