No início da década de 1980, de Cuiabá ao reino Nambikwara, Jacutinga, ambientado com o bioma do cerrado, poderia escolher dois trajetos para chegar à sua morada: ou por Barra do Bugres, passando por Tangará da Serra até a altura da Terra Indígena Pareci, na BR-364; ou por Cáceres, pela BR-070 e daí para frente seguindo para Jauru até alcançar a BR-364, no Jaci ou Barbudo, lugar com borracharia, oficina e restaurante somado a um armazém de secos e molhados. Este último, o preferido da ave por ladear a aldeia do “Capitão Marcos”, um líder Paresi do “tempo de Rondon”, que vestia gandola verde do Exército Brasileiro e calção seguro por um cinto com um revolver 45, sem tambor, acondicionado ao coldre. “Capitão Marcos” gostava da paragem de Jacutinga, quando lhe
presenteava com ferramentas ao final da prosa. Nessa época, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não se fazia presente no altiplano dos Paresi. O indigenista Baiocchi chegou um pouco mais tarde.
Foi no ano de 1980, quando passou a viver com os grupos Nambikwara do Cerrado, que Jacutinga, ao volante da viatura Ford F-75 azul, avistou indígenas, logo ao atravessar a ponte Marechal Rondon sobre o rio Paraguai, em Cáceres. Estavam próximos às suas casas de taipa cobertas por palhas de acuri, na margem da BR-174, na área de servidão, uma faixa estreita de terra entre a rodovia e a cerca das fazendas. Tempos depois, conversando com Sílbene de Almeida, chefe do Posto Indígena Manairisu, soube que eram indígenas pertencentes ao povo Chiquitano, habitantes da região de fronteira Brasil-Bolívia. Para satisfazer o interesse de Jacutinga, indicou a leitura do livro “Na Rondônia Ocidental” (1938), de Frederico Rondon.
Vivendo entre os povos Nambikwara (1979-1988) e Potiguara (1988-1989), somente em 1997 Jacutinga, morando em Cuiabá, põe-se à dedicação do povo Chiquitano ao ler uma matéria de jornal sobre a construção do gasoduto Bolívia-Brasil, trecho San Mathias, na Bolívia, a Cuiabá, passando por Cáceres. Essa informação juntou-se à documentação produzida pela Funai, em 1995, referente aos trabalhos de vistoria efetivados na região Gomalina, com vista ao pedido de identificação da Terra Indígena Lago Grande, realizado por Denise Maldi Meireles, Juscelino Melo e Gilmar Campos Soeiro. Nessa época, os indígenas eram identificados pela população não indígena como “fronteiriços”, “regionais”, “bugres”. Nunca como indígenas!
Por iniciativa própria, Jacutinga e seu amigo Luiz Antônio de Araújo foram até à GasOcidente do Mato Grosso, proprietária do trecho brasileiro do gasoduto que traz gás natural da Bolívia até à Usina Termoelétrica Cuiabá. Queriam saber se havia um estudo socioambiental para a compreensão da situação em que se encontrava o povo Chiquitano que seria atingido por empreendimento. A constatação foi a esperada: não havia o “Componente Indígena”. A partir daí o Ministério Público do Estado do Mato Grosso foi notificado e passou a representar os interesses do povo Chiquitano, com pedido de um estudo com base nas diretrizes da Funai.
Alguns anos depois, foi localizado um documento, de 1989, encaminhado à Funai de Cuiabá intitulado “Considerações sobre os Chiquitanos da fronteira Brasil-Bolívia na região da Serra de Santa Bárbara-MT”, de autoria de Mario Friedlander, da Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente (ARCA), resultado de uma expedição à região da Serra de Santa Bárbara, composta por representantes da Fema e do Ibama. Um significativo registro da situação de violência contra o povo Chiquitano e da espoliação “da terra na qual nasceram e na qual sempre viveram”.
Um grupo de estudos, constituído em 1998 com recursos da GasOcidente sediada em Cuiabá, levou a campo a antropóloga Joana Fernandes e os indigenistas Juscelino Melo e Jacutinga, com intuito de estudar o povo Chiquitano na área de fronteira.
Logo no início dos trabalhos de campo o grupo conheceu na área de servidão da BR-174, Paulo e Izabel, um casal Chiquitano, que se identificou como “gente da fronteira”. Poucos dados etnográficos foram recolhidos das escassas falas do casal. Ao encerrar a visita, Jacutinga teve sua atenção ao pé de feijão de corda, leguminosa que subia viçosa pela cerca. Curiosa, a ave quis saber o nome daquela espécie. A sonoridade “tric-tric” ecoou como sinais de bons augúrios. Com afeição às sementes, instigadoras de conversa, empatia, aproximação, pediu algumas vagens do feijão “tric-tric”.
E foi na companhia do feijão “tric-tric” que os três percorreram a rodovia MT-265, passando pelas guaritas dos destacamentos do Exército, no abrir e fechar das cancelas, controlando o passar de pessoas. A fronteira era “terra de ninguém”. Bandos de criminosos assaltavam pelas estradas e fazendas, impondo pavor. Ao chegarem na área do Destacamento de Fortuna, encontraram famílias Chiquitano na triste condição de “permissionários”.
Aos poucos o céu noturno engolia o da tarde. Joana, Juscelino e Jacutinga de frente à casa de taipa coberta com palha de acuri. Um casal de idosos os recebeu. José Mendes e esposa. A ave com as favas de sementes “tric-tric”. Começou a debulha-las. O ruído, semelhante à forma oral da palavra, iniciou a conversa. O idoso perguntou de onde vinham aquelas sementes. Foi “dona” Izabel quem me deu, falou Jacutinga. “Dona” Izabel é minha mãe, disse o indígena. Eu não a vejo há anos…
A porta da casa foi aberta aos três recém-vindos. E suas redes de dormir foram abraçadas pelo frescor de suas paredes de taipa.