Diários póstumos.
O ocorrido se deu na Artíndia, uma loja de comercialização de artefatos de diversos povos indígenas. Um encontro promovido pelo indigenista Jacutinga. A ave chegou mais cedo do que o combinado. Ansiava pela vinda dos esperados: Adalberto Holanda Pereira (1927-1996), etnólogo e escritor, e Herta Klein Tolksdorf (1941-2020), professora da Fundação Nacional do Índio. Intento da reunião: convencer a viúva Herta a ceder a Adalberto, a título de empréstimo para tradução, os diários de seu finado marido, Friedrich Paul Tolksdorf (1912-1992), sertanista nascido em Vestifalia, norte da Alemanha.
Jacutinga fez as honras da casa. Apresentou Adalberto à Herta, ela sua conhecida de longas datas e acontecidos – afinal, lá pelos idos de 1980 havia dado uma de cupido e uniu Friedrich e a professora, que sem precisar fazer uso do arco e da flecha acertou os dois corações. No histórico pátio da Artíndia (espaço que acolheu o Serviço de Proteção aos Índios), com suas mangueiras de frondes verdejantes, Herta, diante de todos, revelou em estado de hipnose a semelhança facial entre seu marido e Adalberto. Ainda que duvidosa, a parecença do cearense e do alemão contribuiu para que os originais dos diários pousassem nas mãos do padre que os levou a Peter von Werden.
Os diários de Fritz, como era chamado Tolksdorf, das mãos de Herta passaram, por intermédio de Jacutinga, para as do padre cearense Adalberto Holanda Pereira, que passaram para as de Peter von Werden (1928-2015), quem se responsabilizou pela tradução do diário do alemão para o português – Entre seringueiros, índios, agrimensores, colonos e garimpeiros de Mato Grosso. Depois pelas do padre José de Moura e Silva (1928-2015), que colaborou na organização do diário e revisão do texto já traduzido para o português. E no ano de 1992 os diários de Fritz iniciaram um percurso para se tornarem livro, desejo externado várias vezes em seus escritos-confidências.
Werden, com extrema dedicação, traduziu as centenas de páginas das confissões de Fritz nas águas do Juruena, Arinos e seus afluentes, onde viveu em fins da década de 1950 e início da seguinte junto aos povos Rikbaktsa, Kayabi e Tapayuna, à época denominados de Beiços de Pau. Entre indígenas, seringueiros e colonos, tentou atenuar a violência estabelecida pelo contato, junto ao padre João Evangelista Dornstauder (1904-1994).
E depois daquele encontro na Artíndia, outras tantas mãos vêm folheando as páginas de vivências de um alemão nas áreas de colonização da Amazônia. Hoje, uma cópia do diário integra o acervo da BibliOCA, no município de Juína, primeira biblioteca indígena de Mato Grosso, com arquitetura semelhante a do povo Rikbaktsa, com quem Fritz se afeiçoou.
Diários póstumos.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.